Dia Internacional da Mulher: do gênero à interseccionalidade
O Dia Internacional da Mulher vem ganhando força a cada ano como um dia de luta pelos direitos das mulheres. Na academia cresce o número de pesquisas que pensam as questões de gênero, feminismos, a história das mulheres entre outros aspectos que envolvem o tema. Mais recentemente, uma outra perspectiva vem sendo abordada nos estudos: a interseccionalidade.
O termo, utilizado pela primeira vez pela norte-americana especialista em raça e gênero Kimberlé Williams Crenshaw, é utilizado nas discussões dos cruzamentos entre duas ou mais formas de subordinação. O conceito analisa as diversas formas de discriminação sofridas para além do fato de ser mulher. Uma mulher LGBTQI+ passará por situações de discriminação diferentes das sofridas por uma mulher negra e a mulher negra sofrerá as consequências do machismo e do patriarcado de forma diferente do que uma mulher branca.
Diversos estudos realizados na UFPel dão conta destas questões. Neste sentido, um estudo que está sendo realizado desde 2019 no Mestrado em Antropologia da UFPel tem como objetivo fortalecer as vozes de mulheres negras pelotenses que foram e são invisibilizadas dentro da cultura discriminatória e do machismo estrutural.
A pesquisa intitulada “Nós também escrevemos essa história”: Escrevivências e narrativas biográficas de mulheres negras em Pelotas de autoria da jornalista e militante dos movimentos negros e sociais Ediane Oliveira, tem a orientação da professora Louise Afonso e busca trazer para dentro da academia o conhecimento de mulheres negras e idosas que são representativas em um campo de atuação. “A mulher negra está na base da pirâmide social. Ela que tem os menores salários e é a que mais morre. Muitos dos feminicídios, dos estupros, as maiores violências estão na base de raça, gênero e classe”, explicou a mestranda.
A pesquisa foi destaque da última edição do Encontro de Pós-Graduação da UFPel, o maior evento de pesquisa da Universidade e utiliza como metodologia os estudos da escritora Conceição Evaristo. De acordo com Ediane, a autora chama de “escrevivência” o que carrega e expressa, através de palavras, os sentimentos, os sofrimentos, as alegrias, os gritos e os sussurros de uma multidão de pessoas, sobretudo, mulheres, cujas vozes são insistentemente caladas. “A ideia é analisar as suas histórias como forte contribuição para a narrativa da cidade de Pelotas, suas escrevivências são histórias vivas em diferentes aspectos: resistência política, fé, cultura e saberes populares”.
Para a pesquisadora, é necessário entender que o conhecimento delas é importante para a academia. “Na Universidade se fala muito sobre o movimento negro e sobre mulheres, então vamos ouvi-las. Vamos parar de teorizar unicamente, vamos ouvir estas mulheres que têm muito a nos ensinar sobre várias coisas, porque elas resistem muito nos espaços que elas estão. O saber popular precisa ter essa visibilidade”, disse.
Interlocutoras
As interlocutoras de Ediane atuam em seguimentos diferentes e em regiões diferentes da cidade, possibilitando a percepção de vários aspectos sobre a história de Pelotas. A pesquisa é de imersão e convivência direta com as seis mulheres, nos ambientes que elas atuam. “Os espaços que elas estão também são bem masculinizados. A Dona Maria, por exemplo, é construtora de Sopapo. É um trabalho muito masculino”, identificou.
– Dona Ernestina Pereira é liderança do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Pelotas e é uma representação importante para a luta das mulheres, especialmente negras, já que são predominantemente fortes as estatísticas de trabalhadoras domésticas negras no país.
– Dona Sirley Amaro, mestra griô, é compositora, carnavalesca, contadora de histórias e costureira aposentada. Através da oralidade, ela dá uma grande contribuição para a preservação da cultura negra em Pelotas. Com memórias e sabedorias, carrega consigo as histórias de sua ancestralidade atravessando as Charqueadas de Pelotas.
– Dona Maria Baptista, como já mencionado, continuou o trabalho do seu marido mestre Baptista na construção do instrumento musical sopapo, um tambor inventado pelos escravizados que trabalhavam nas charqueadas, na região de Pelotas. Dona Maria tem participação direta no carnaval histórico e popular de Pelotas.
– Dona Conceição Teixeira é conhecida pelo seu trabalho social com crianças através da Sociedade Espírita Assistencial Dona Conceição. Contudo, ela também é compositora e o seu trabalho ficou mais conhecido através de outra pesquisa também da UFPel, realizada pelo professor da Música, Leandro Maia. Apesar de não tocar nenhum instrumento musical ela compôs mais de mil sambas.
– Dona Ondina Oliveira é uma doceira negra que tem uma narrativa sobre o doce totalmente diferente da ideia que se tem do doce de Pelotas, o doce português, o doce com a herança europeia. “Ela fala que o doce é africano, porque foram as mulheres negras que colocaram as mãos nas receitas dos doces que hoje estão na Fenadoce. E ela defende esta ideia de que a receita veio da Europa, mas as mulheres escravizadas é que faziam esses doces, nos casarões da cidade”, explicou Ediane.
Uma história negra de Pelotas
De acordo com Ediane, é uma história negra de Pelotas, contada por mulheres negras e as histórias delas se encontram, não são muito diferentes entre si. São senhoras negras que regulam de idade, nascidas em Pelotas e residentes na cidade. “A dor de uma que passou por um tempo em que era empregada doméstica na casa de alguém, a outra vai contar uma história bem parecida, com uma dor semelhante, porque elas regulam muito de idade”, disse.
A ideia é que a pesquisa vire um livro e um documentário, além de abrir espaço para que estas mulheres possam estar mais presentes nos espaços da academia, ministrando palestras por exemplo. “Elas têm que ter visibilidade porque elas fazem coisas incríveis, elas são incríveis e a biografia delas não é vista. Então eu quero que as pessoas as ouçam. Estamos o tempo inteiro falando nisso, mas não ouvimos estas mulheres. O tema está em alta, mas quem é que ouve a mulheres negra de fato?”, questionou.
Por um saber científico negro
Outro diferencial da pesquisa de Ediane é a bibliografia utilizada para a base teórica do estudo que é fundamentada exclusivamente a partir de escritoras negras. “A principal escritora da minha dissertação é Lélia Gonzales que foi uma antropóloga que não é estudada nos cursos de Antropologia do Brasil, mas é reconhecida fora do país”, explicou. Ediane também utiliza a teoria de outras pesquisadoras brasileiras como Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro. “Elas produzem conhecimento. Mulheres negras podem ser intelectuais e não precisamos mais utilizar a teoria dos outros para falar sobre nós”, finalizou.
Foto: TV Câmara – Volmer Perez