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Na conferência de abertura da SIIEPE, Rosana Pinheiro-Machado aborda o papel da universidade

Uma fala realista, mas cheia de esperança. Assim foi o tom da conferência de abertura da 7ª Semana Integrada de Inovação, Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Federal de Pelotas (SIIEPE/UFPel). Ao conduzir as reflexões sobre o tema principal da Semana, “O Papel Político, Social e Científico da Universidade na sociedade atual”, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade de Bath (Reino Unido), fez alertas sobre a perseguição que as instituições de ensino sofrem no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, falou sobre a crença na força das pessoas que fazem as universidades e uma esperança ativa – aquela que, como motor, atua para construir o futuro.

A convidada falou sobre o Brasil nos últimos quinze anos, sobre o momento difícil que o país que atravessa, e trouxe reflexões sobre o papel da universidade na crise. A pesquisadora falou da missão da universidade para além da produção de conhecimento – que por si só é vetor de transformação do mundo –, mas como transformação do indivíduo, principalmente. Não simplesmente como discurso vago, mas na inserção de pessoas que foram socializadas, num país cujo ethos que prevalece é o de uma sociedade colonizada, da propriedade, da segregação, do classismo, do racismo estrutural. “[A universidade] é o lugar onde a gente vai ter essa transformação, que antes de ser da sociedade, parte da transformação do indivíduo em cidadão numa das esferas que tem sido e ainda é talvez o maior loco no Brasil onde se exerce a cultura democrática, o direito à diferença, a cultura do diálogo, da descoberta e da alegria também”, pontuou.

De acordo com a professora, a universidade evidentemente é lugar de inovação, de desenvolvimento nacional – no século 21 a corrida pelo desenvolvimento das grandes nações está voltada para produção de conhecimento e inovação – mas as universidades são, principalmente nesse contexto de crescente autoritarismo, espaços resistentes. “Esse espaço está em profundo ataque, está sendo bombardeado, mas a gente sabe que na constituição desse espaço ao longo dos últimos quase três anos – tivemos muita evidência ao longo da pandemia –, a universidade resiste”, afirma.

Em seguida, a docente abordou a trajetória de suas pesquisas no momento atual. Segundo ela, o Brasil viveu, com muitas evidências, um momento de expansão do processo democrático nos últimos 20 anos, especialmente nos anos 2000, entrando num processo de expansão de políticas educacionais e democratização e acesso, de eliminação da fome e extrema pobreza. A professora falou sobre a sustentabilidade dessas políticas, não só o quanto estão ameaçadas, mas o quanto é vital que se lute pela sua continuidade, principalmente de acolhimento estudantil. “Porque sem isso não há cultura democrática, não há transformação, não há nada, a gente cai num vazio de produção. Todas essas políticas, desde Bolsa Família até o acesso à universidade são políticas que não eram perfeitas, num período muito curto para quebra de barreiras históricas”, analisa.

Em sua avaliação, depois de alguns anos recebendo Bolsa Família, quando as mulheres começavam a se negar a uma lógica de servidão, isso fez com que seus filhos colocassem a universidade no horizonte. E isso está ligado com o que chamou de transformação subjetiva, que tem a ver com o alargamento da capacidade de aspirar, imaginar. “A gente não transforma sem que os indivíduos acreditem que possam ir mais longe, que podem começar a sonhar”, disse.

De acordo com a pesquisadora, o maior desafio é que essa mobilidade social possa ser mantida. Afinal, ela é geracional, e não ocorre em poucos anos. Conforme mencionou, o Brasil é o país com maior tempo de gerações para mobilidade social – o que na Dinamarca, por exemplo, leva duas gerações para se consolidar, aqui leva nove. “É um dos países com maiores barreiras para pensar mobilidade social. Uma crise pode colocar tudo isso em risco”, alertou.

A professora ainda apresentou um dado preliminar de seus estudos pela primeira vez publicamente. Segundo ela, o Brasil é o único país que apresenta algo impressionante: se vê melhoria de vida de quem acessou a universidade privada via política de financiamento, como Fies e ProUni, mas a mais drástica mudança diz respeito aos que ingressam na universidade pública via políticas de acesso, como cotas e conjunto de condições. São estudantes que residiam em ocupações, favelas e comunidades com infraestrutura muito precária. “E a universidade pública faz uma revolução na vida desses sujeitos. Suas capacidades foram expostas às oportunidades da universidade”, como, exemplificou, aprender línguas estrangeiras, receber bolsa de pesquisa, ampliar os tipos de leituras e a interação social. “É um processo radicalmente transformador. E a gente sabe o quão importante é manter políticas de manutenção para esses estudantes. Porque a pobreza é multidimensional e está relacionada à capacidade de imaginar, de acesso a livro, a conhecimento, não só à renda. E nenhuma instituição no Brasil tem poder tão transformador quanto a universidade, no poder de aceleramento de diversos aspectos, de romper com a pobreza multidimensional e colocar o indivíduo num lugar que não é só de pesquisa, mas de transformação de todo o seu universo”, afirmou.

Capacidade de sonhar
“Hoje o que mais preocupa é justamente a manutenção da capacidade de sonhar e a saúde mental desses estudantes”, destacou a professora. Segundo ela, hoje no Brasil toda a mensagem é o contrário do “brilho” – o mote que surgiu há alguns anos em países emergentes, que propala que “gente é para brilhar” -, mas “expulsa, deprime e deteriora a saúde mental dos estudantes. Somos a universidade da ‘balbúrdia’”, citou, mencionando ainda que o Ministério da Educação é comandado por pessoas que não são da área e a política econômica apresenta cortes de R$ 600 milhões que vão atingir principalmente as bolsas. “O Brasil é um país que não sustenta seus estudantes sem bolsa”, afirma.

No entanto, pontua, não se trata apenas de cortes, que já foram vivenciados em outras ocasiões. “O que a gente tem hoje é uma combinação única de cortes e ódio. Viramos inimigos. Somos perseguidos, humilhados e administrados por pessoas que não entendem o que a gente faz”, lamenta. E superar essa situação é o grande desafio posto hoje. “A gente sabe que a universidade não vai apagar as luzes. Mas vemos um desprezo. Qual é o sentido dizer para esses alunos que viram o ‘brilho’ e começaram a sonhar, que daqui a pouco essa janela fecha?”.

Com sua experiência de professora, ela diz perceber que o estudante brasileiro é um dos mais criativos e com vontade de estudar do mundo, com os recursos que tem. A docente diz acreditar que a geração que teve acesso a essas políticas afirmativas vai transformar a universidade por dentro e seguir lutando por melhorias. “Eles não vão recuar tão fácil. Junto há uma proliferação de coletivos que fazem um grande cordão de resistência”, avaliou.

Segundo ela, a pandemia trouxe consigo um adoecimento acadêmico, e interrompe um processo de resistência que precisa ser humano: a energia vital do coletivo. “Mas creio que essa pedagogia da esperança vai voltar com as aulas presenciais, com muito estudo, trabalho, pesquisa, estando junto, lutando também contra a tristeza”, disse, citando o educador Paulo Freire, para quem a esperança é um motor que possibilite um amanhã melhor. “Para isso, é preciso acreditar e lutar. E isso só é possível com a alegria do coletivo, sem abandonar a revolta contra a injustiça”, afirmou.

Mediando o debate junto à vice-reitora, Ursula Silva, o coordenador de Pós-Graduação da UFPel, Rafael Vetromille-Castro, trouxe ao debate uma frase da própria palestrante em um de seus livros, que trata de ter esperança, mas com muito por fazer ainda. “’Transferir o sonho de um mundo melhor para o futuro é uma posição cômoda. Construir um futuro melhor todos os dias em meio à imperfeição da coletividade e de seus sujeitos é muito menos confortável’. Não é uma esperança boba, mas uma esperança que nos exige trabalho, compreensão, empatia”, salientou.

Uma semana de muito conhecimento
Na abertura do encontro, a reitora Isabela Andrade saudou a palestrante e a comunidade acadêmica, destacando a tradição da SIIEPE em abordar ensino, pesquisa, extensão e inovação. “Agradeço a participação de todos, desejo sucesso e parabenizo a comissão organizadora que esteve à frente desse projeto, para que ao longo desta semana tenhamos a oportunidade de debater temas tão importantes e interessantes”.

A vice-reitora, Ursula Silva, salientou que a SIIEPE é o grande evento acadêmico da UFPel e congrega mais de cinco mil inscritos, entre apresentadores e ouvintes. Segundo ela, este ano, o tema proposto surge em um momento em que é preciso buscar respostas a muitas crises: sociais, econômicas, humanas. “E a Universidade precisa se envolver nesta tarefa, produzindo reflexões, promovendo debates, constituindo conhecimento. Considerando que as nossas necessidades passam por questões de qualidade ambiental, valores sociais, comportamento e vida sustentável, relações de solidariedade, respeito à diversidade e consciência multicultural”, pontuou.

Na ocasião, Rosana Pinheiro-Machado ainda disse estar honrada com o convite para abrir a SIIEPE da UFPel. “O convite me comoveu profundamente, por não estar no país e ser reconhecida por esse evento tão importante, por uma comunidade conhecida internacionalmente por suas pesquisas – nem preciso falar da importância da Universidade nesse tempo de pandemia – e também pela referência nacional pelas políticas de acolhimento estudantil”, elogiou.

Assista
A conferência de abertura pode ser acessada na íntegra no YouTube da UFPel. A programação completa da SIIEPE está disponível aqui.

A convidada
Rosana Pinheiro-Machado é professora de Desenvolvimento Internacional do Department of Social and Policy Sciences na Universidade de Bath e Fellow da Higher Education Academy do Reino Unido. Integra, como investigadora principal, o projeto global “No longer, poor not middle class“, desenvolvido entre quatro instituições em quatro países. Foi professora de Desenvolvimento Internacional na Universidade de Oxford de 2013 a 2016. Foi pesquisadora visitante na Harvard University (2012-2013), com bolsa Capes (então chamada de “pós-doutorado”) de 2012 a 2013. Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fez seu doutorado em Antropologia Social pela UFRGS, sendo bolsista da Wenner-Gren Foundation, com doutorado sanduíche pela University College London (UCL). Considerada nas Ciências Sociais brasileiras como uma das pioneiras na produção de trabalho de campo na República Popular da China. Possui diversas publicações em periódicos internacionais (inglês, espanhol, francês e chinês). Sua tese, baseada em dez anos de pesquisa, acompanhou uma cadeia global de mercadorias na rota China-Paraguai-Brasil, com foco no mercado informal e na pirataria. Esse trabalho foi agraciado com os seguintes prêmios: Primeiro Lugar no “Prêmio ABA/FORD de Direitos Humanos”; “Melhor Tese de Ciências Sociais/ANPOCS” e “Grande Prêmio CAPES de Tese”. Autora de sete livros, entre eles Counterfeit Itineraries in the Global South (Routledge, 2017), Made in China (Hucitec, 2011) e China, passado e presente (Artes e Ofícios, 2013), o referencial de sua trajetória acadêmica tem sido a reflexão sobre a modernidade e o desenvolvimento, especialmente no contexto dos BRICS (com ênfase no Brasil e na China). Autora ou organizadora de sete livros. Em seu último livro, “Amanhã Vai Ser Maior” (Editora Planeta, 2019), ela analisa a crise brasileira, a ascensão da extrema-direita e as possíveis rotas de fuga. Rosana Pinheiro-Machado dedica-se no momento aos temas da propriedade intelectual, pirataria e informalidade; comércio internacional, produção, consumo e mercado; pobreza, política nas periferias urbanas e desenvolvimento em economias emergentes. Já foi colunista da CartaCapital e do Intercept. Atualmente é colunista do El Pais. Tem textos publicados com frequência no The Washington Post.

Publicado em 19/10/2021, nas categorias Destaque, Notícias.
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