Semana Nacional visibiliza a luta por direitos das pessoas com deficiência intelectual e múltipla
A minha aparência não é como a da maioria das pessoas. Meus dedos identificam caracteres e me ajudam a perceber o mundo à minha volta. Minhas mãos, por meio de sinais, expressam um idioma. Elevadores, rampas e cadeiras de rodas apoiam o meu movimento. Embora não seja visível, também tenho uma condição específica: meu tempo de aprendizagem não é como o das demais pessoas. Mas nada disso me define. Por trás da deficiência, há um ser humano, muitas vezes oculto pelo preconceito, dotado de sentimentos, interesses e potenciais. Diferentes entre si, mas iguais em direitos: de participar da vida em sociedade e de acessar a Universidade e quaisquer outros espaços. Na Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla, celebrada de 21 a 28 de agosto, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) propõe momento de reflexão para o enfrentamento ao capacitismo: o crime de discriminação às pessoas com deficiência (PCD).
A experiência escolar não foi como das outras pessoas. Nem o acesso ao mundo do trabalho. O preconceito, a exclusão e as ofensas sempre estiveram presentes em várias dimensões da vida. Nascida com a síndrome de Treacher Collins, mutação genética rara responsável por provocar a deformação da estrutura óssea da face, a professora do curso de Design da UFPel Chris Ramil é um dos exemplos de resistência às barreiras do capacitismo.
Além das características perceptíveis, Chris Ramil também possui condição oculta: a surdez total de um dos ouvidos. Desde os três anos de idade, utiliza aparelho auditivo. Entretanto, com os estímulos desde cedo, é considerada uma pessoa “surda oralizada”, quando a comunicação é desenvolvida pela fala e pela leitura labial — para a identificação das deficiências invisíveis, a Lei Brasileira de Inclusão contempla desde 2023 um símbolo nacional para identificação de pessoas com deficiências: o cordão de fita com desenhos de girassóis.
“O que me ajudou muito foi o amparo da minha família, de não me colocar em uma redoma. Sempre fui jogada pra vida para viver, para enfrentar”, relata. A professora é graduada em Design Gráfico e Artes Visuais, mestre e doutora em Educação pela UFPel. “Eu pude viver com deficiência na mesma universidade como aluna e agora como professora”, reflete, ao indicar, por um lado, as dificuldades de aprendizado como estudante, provocadas pelas atitudes negativas e práticas de ensino excludentes; e por outro, as suas estratégias e projetos anticapacitistas no contexto acadêmico.
Ela conta da necessidade do “esforço a mais” para acompanhar os conteúdos, por consequência do desinteresse à época pela acessibilidade: “muitas vezes, os professores ficavam de costas. Não davam bola. Falavam baixo. Tinham uma dicção muito ruim”. O problema, avalia, ainda é presente no contexto acadêmico. “A questão é urgente. A gente segue vendo descaso ainda em relação a esse tema. As pessoas não querem sair da zona de conforto”, critica.
A sua trajetória acadêmica e profissional, no entanto, contrasta com a realidade do País. A maioria das pessoas com deficiência (63,1%) não completa o Ensino Fundamental, segundo o Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) — aproximadamente o dobro em relação às pessoas sem deficiência. Já o índice de analfabetismo, em comparação, é quatro vezes superior. Além da menor escolaridade, a Pesquisa Nacional também revela que as pessoas com deficiência têm menos inserção no mundo do trabalho, com maiores índices de informalidade e salários inferiores.
Chris Ramil entende a Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla como um símbolo de uma luta histórica que deve ser permanente. “É mais que urgente a Universidade ter esse olhar para o capacitismo. Infelizmente, em pleno 2025, está muito forte em todos os sentidos na comunidade acadêmica”, alerta. A Semana especialmente dedicada ao tema é definida desde 2017 por Lei.
Nesse período, busca-se conscientizar a população e combater o preconceito e a invisibilidade. As pessoas com deficiência, embora ocultas pelo preconceito, estão presentes na quinta parte dos lares no País. São mais de 14,4 milhões de pessoas, o que corresponde a 7,3% da população brasileira. Desse quantitativo, o levantamento do IBGE estima que 29% são caracterizados como deficiência intelectual e 32,9%, múltipla, os públicos abrangidos pela Campanha Nacional.
A deficiência intelectual consiste nos casos de comprometimento intelectual, no raciocínio, habilidades de comunicação e aprendizagem. Já a múltipla é identificada quando há simultaneamente pelo menos dois tipos: física, visual, auditiva, mental e/ou intelectual. “[A Semana Nacional] é uma oportunidade de mobilização social, para que a sociedade entenda as deficiências de uma outra forma, como condição de uma pessoa”, explica a coordenadora de Acessibilidade da UFPel, Renata Cristina da Silva.
Capacitismo é crime
A legislação brasileira, principalmente a partir da Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência), protege os direitos e liberdades dessa parcela da população, historicamente limitada ao pleno exercício da cidadania. É definido como crime “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”, como ofensas verbais, impedir o acesso em estabelecimentos, negar oportunidades ou atendimento. O capacitismo é caracterizado, principalmente, explica Renata Cristina, quando se presume a inferioridade em razão da deficiência.
Quem presenciar ou sofrer situação de capacitismo deve agir para que os direitos de todas as pessoas sejam respeitados. Diversos canais e instituições estão habilitados para receber denúncias. Na UFPel, para casos relacionados ao contexto acadêmico, a Ouvidoria pode ser acionada. As manifestações são recebidas por uma plataforma on-line integrada por órgãos e entidades do Poder Executivo Federal: a Fala.BR.
Para todas as situações de violação de direitos humanos, entre as quais estão as práticas de discriminação capacitista, o canal oficial do Governo Federal é o Disque 100. O serviço, on-line ou por telefone, funciona 24h por dia. A identidade de quem denunciar, mediante solicitação, é mantida em sigilo.
As situações de discriminações mais graves, como violência física, verbal ou negligência ou impedimento ao acesso de espaços públicos ou privados, orienta o Senado Federal, devem ser registradas nas Delegacias de Polícia. O Ministério Público (Estadual, Federal ou do Trabalho, a depender do contexto) também pode ser mobilizado, principalmente quando se tratar de serviços públicos ou empresas. A comunicação pode ser enviada on-line, pelas páginas dos órgãos.
Se o capacitismo for identificado no ambiente de trabalho ou em estabelecimento comercial, existem órgãos com competência específica: a Superintendência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego e o Serviço de Defesa do Consumidor (Procon), respectivamente. As Defensorias Públicas (Estadual e da União) também podem ser acionadas para defender as vítimas judicialmente, em busca de reparação aos danos causados.
Independentemente do canal, é preciso detalhar os fatos (dia, hora, local, pessoas e instituições envolvidas), apresentar as provas do crime (fotografias, vídeos, e-mails ou testemunhas, sempre que possível) e demais documentos complementares, como o laudo médico comprobatório da deficiência.
“Somos todos capacitistas em desconstrução”
O panorama social de exclusão das pessoas com deficiência é o resultado de diversas barreiras discriminatórias não restritas à supressão de obstáculos físicos em edificações. Entre os impedimentos às pessoas com deficiência à participação igualitária na sociedade, está o comportamento social diante das deficiências. “Acessibilidade não é só rampa, não é só corrimão”, explica Chris Ramil.
Atitudes negativas, baseadas no preconceito, repelem a participação das pessoas com deficiência na sociedade. “Essa é a primeira dimensão e a mais urgente que a gente tem de trabalhar na universidade”, pontua, ao se referir às nove dimensões de acessibilidade, que atualizam o trabalho de Romeu Sassaki, referência em inclusão no Brasil: as dimensões atitudinal, arquitetônica, metodológica, instrumental, programática, comunicacional, natural, de transporte e digital.
Um dos exemplos dessas atitudes negativas é a comum associação de condições específicas à inferioridade. “É muito importante a gente desmistificar as deficiências”, sintetiza. Ela se refere a situações comuns de preconceito, quando as pessoas com deficiências visíveis são percebidas como “incapazes” ou “infantis”, como se estivessem associadas a prejuízo cognitivo.
O público PCD precisa ser percebido, defende, para além de suas características: “A gente precisa entender que tem um ser humano ali antes das deficiências”. Para isso, a sociedade deve refletir sobre as suas práticas naturalizadas de exclusão: “Não somos todos iguais. Somos todos diferentes. E que bom que somos todos diferentes. Para isso, nós precisamos nos conhecer”.
O caminho é a desconstrução, inclusive das expressões preconceituosas generalizadas no cotidiano. Ela explica que, embora não se tenha a intenção de ofender, frases tipicamente capacitistas precisam ser problematizadas. “Não ter perna”, “dar uma de joão-sem-braço” e “portador de deficiência” são exemplos de construções desrespeitosas. “É uma questão de sensibilização de as pessoas entenderem o que isso afeta e envolve”, ressalta.
Inclusão para além da sala de aula
Da sala de aula aos espaços de convivência, a inclusão de pessoas com deficiência no Ensino Superior deve se dar em todos os contextos acadêmicos. “Hoje a Universidade caminha nesse processo de adequação das necessidades específicas para além da sala de aula”, conta Renata Cristina, a exemplo das adequações dos restaurantes universitários, do transporte de apoio, das bibliotecas e dos eventos. O entendimento institucional, explica, é de que a inclusão e a acessibilidade devem ser oportunizadas desde o ingresso à Instituição até a conclusão com êxito.
Atualmente, 360 pessoas com deficiência, entre estudantes, servidoras e servidores, são atendidas pela Coordenação de Acessibilidade da UFPel, estrutura administrativa vinculada à Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe), localizada no 4º andar do câmpus Anglo (rua Gomes Carneiro, 1). Quem ingressa na Instituição pela política de reserva de vagas passa automaticamente pela assistência do setor. Pessoas com deficiência ingressantes pela ampla concorrência, entretanto, precisam manifestar o interesse para que possam ser inseridas nas ações de inclusão e acessibilidade.
Os desafios institucionais para a promoção da acessibilidade, avalia a coordenadora, encontram-se nas restrições orçamentárias, em nível nacional, e nas atitudes discriminatórias em relação às deficiências. Apesar das limitações, conforme Renata, já há avanços institucionais importantes, como a capacitação de docentes ingressantes e de servidoras e servidores que já atuam na Instituição. A temática tem sido trabalhada em concursos, disciplinas, nos projetos pedagógicos de cursos e inserida nos sistemas eletrônicos da Universidade. “É uma longa caminhada. Já temos muitos resultados positivos. As nossas ações servem de exemplo para outras universidades”, comemora.
Texto: Jandré Batista
Arte: Márcia Marangon
Fotos: Vanessa Ferro e Anna Carolina Batista
