Dia do trabalhador e da trabalhadora: um chamado à mobilização social
O histórico de lutas pela garantia de direitos dos e das trabalhadoras, celebrado internacionalmente em 1º de maio, indica a necessidade de um olhar renovado, atualizado às dinâmicas e desafios do mundo contemporâneo. A preservação das conquistas e da qualidade de vida das pessoas que dedicam o seu tempo e a sua força de trabalho em troca da própria subsistência demanda novas percepções e garantias diante de formas emergentes de precarização, das mudanças climáticas, da transformação digital e da necessidade de aumento da proteção social.
Jornada limitada a 8h diárias, férias, descanso semanal remunerado e licença maternidade são alguns dos direitos fundamentais conquistados pela classe trabalhadora a partir do processo de reivindicação. Nos diversos movimentos da história, o padrão é o cenário de “muita exploração” da classe trabalhadora, considera a professora dos cursos de História da UFPel, Lorena Gill. atenuado apenas pela mobilização social.
O primeiro movimento simbólico pela defesa de direitos trabalhistas remonta às manifestações contrárias às jornadas exaustivas e condições impróprias, em 1º de maio de 1886, em Chicago, nos Estados Unidos. Três anos depois, durante Congresso Internacional realizado em Paris, o objetivo foi alcançado; a jornada diária, limitada para 8h.
Na realidade brasileira, o trabalho iniciou-se com a marca da opressão: a escravização das populações indígenas e, depois, com a de pessoas africanas trazidas à força para o novo território. Após, com a abolição (em 1888), a mão de obra escravizada foi substituída pela força de trabalho de imigrantes, vulneráveis e explorados, que buscavam no País melhores condições de vida.
Diante desses cenários de indignidade aos trabalhadores e às trabalhadoras, as constantes lutas têm sido a forma encontrada, durante a história, para conquistas de direitos. “Todas as legislações construídas ao longo do tempo representam uma história de muita luta de pessoas que fizeram greves, campanhas e se mobilizaram para ter a possibilidade de ter uma vida um pouco mais digna”, identifica a professora.
Um dos principais resultados no reconhecimento de direitos, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completa 82 anos em 1º de maio. Além das já elencadas, a norma estabelece proteções contra demissão sem justa causa, prevê seguro-desemprego, direito à hora extra, proteção a ambientes insalubres, entre diversas outras situações. Muitos desses direitos, dada à sua importância, foram, posteriormente, inseridos na Constituição Federal de 1988.
A pesquisadora da UFPel aponta também para a importância da criação das caixas de aposentadoria e pensões, em 1920; da Carteira Profissional (hoje chamada Carteira de Trabalho e Previdência Social), em 1930, durante o governo Getúlio Vargas; e da fundação da Justiça do Trabalho, em 1941. A Universidade, para resguardar a história de resistência das e dos trabalhadores, conta com o Núcleo de Documentação Histórica (NDH). No acervo, estão mais de 93 mil processos trabalhistas de Pelotas, disponível para consulta.
As conquistas históricas, entretanto, alerta, demandam “constante vigília” para a sua manutenção. Como exemplo, ela critica a “reforma trabalhista” de 2017, durante a administração Michel Temer. Essas alterações legislativas provocaram maior precarização de direitos, flexibilização de jornadas e das formas de contração. “O dia 1º de maio precisa continuar sendo uma data marcada pela luta e resistência daqueles que constroem a riqueza do nosso país: trabalhadores e trabalhadoras brasileiras”, lembra.
O trabalho e a saúde
A professora do Departamento de Medicina Social da UFPel Anaclaudia Fassa, que atua com pesquisas na área de saúde da e do trabalhador e possui experiências em instituições internacionais dedicadas ao tema, como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), explica que o trabalho, entre outras condições, é um dos elementos estruturais em saúde, assim como educação, a renda e a classe social. A forma como se relaciona com o mundo laboral e suas implicações, como os níveis de informalidade, a precarização, a quantidade de proteção social, o acesso a serviços de saúde, as garantias em caso de adoecimento, sistema de pensões, são essenciais para avaliar a qualidade das políticas públicas. “A proteção social precisa ser universal”, defende.
O movimento recente de estruturação do trabalho, entretanto, tem ampliado essas vulnerabilidades, em consequência da precarização, da transformação digital, das mudanças climáticas e da falta de proteção social. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) apurou que, desde o segundo semestre de 2020, 70% dos novos postos de trabalho na América Latina eram informais — no Brasil, 68%. Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) registrou aproximadamente 2,9 mil mortes, num universo de meio milhão de acidentes ocupacionais.
Esse contexto mostra-se ainda mais preocupante para o caso de pessoas que migram em razão do trabalho, sujeitas a outras barreiras, linguísticas e sociais, para o acesso a direitos. Essa condição torna essa parcela da população mais suscetível às situações extremas de exploração, alerta a pesquisadora, ao citar os casos, noticiados em 2023, de trabalho análogo à escravidão em vinícolas do Rio Grande do Sul
Conforme a pesquisadora, os números registrados de acidentes de trabalho escondem a dimensão real do problema: apenas 5% dos casos são contabilizados, justamente por parte da parcela da população com acesso aos benefícios sociais. Anaclaudia avalia que a situação não é “catastrófica” no Brasil por conta do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por garantir o acesso universal — situação que não ocorre com países que dispensam essa política pública.
A precarização tem ganhado novos contornos, na avaliação de Anaclaudia, em razão do contexto de transformação digital e do trabalho “de plataforma”, a exemplo dos aplicativos de entrega de alimentos e de transporte de pessoas. É preciso, entende a pesquisadora, a construção de uma “formalização adequada”, para que os e as trabalhadoras tenham a proteção social devida. Em caso de acidente de trabalho, critica, não há qualquer prejuízo à empresa; o ônus recai apenas sobre o sistema público de saúde; sustentado pelos recursos das e dos contribuintes, sem qualquer responsabilização à plataforma.
Além disso, os avanços tecnológicos, intensificados atualmente pela difusão dos recursos de inteligência artificial, em vez de gerarem avanços sociais, têm sido responsáveis pelo aumento das desigualdades. “A acumulação dos ganhos está sendo concentrada e não distribuída”, descreve. O trabalho remoto, em muitos contextos, gera a possibilidade de ampliação da jornada de trabalho e cria novas estratégias de exploração sobre a trabalhadora e o trabalhador, o que impacta também no prejuízo à organização de movimentos reivindicatórios por direitos.
O isolamento social, a saúde mental e a desinformação são também questões levantadas pela pesquisadora pela forma como está sendo conduzida a “transição digital”, principalmente após o contexto de pandemia de Covid-19. “O Brasil se saiu muito mal na pandemia. Acelerou as mudanças no mundo do trabalho”, lamenta, ao referenciar, a diminuição do salário real e o empobrecimento da classe trabalhadora.
Outro desafio contemporâneo citado pela pesquisadora são as mudanças climáticas. Os impactos na saúde do e da trabalhadora são percebidos pelo aumento da pobreza e nas doenças associadas, com modificação de sua distribuição geográfica, como é o caso da dengue e chikungunya — transmitidas pelo Aedes aegypti, mosquito que se reproduz mais facilmente entre 22°C e 32°C.
As temperaturas elevadas intensificam cenários de trabalho extenuante, como na agricultura, na construção civil e na pesca. Ampliam os riscos de acidentes e a ocorrência de eventos climáticos extremos, como as inundações no Rio Grande do Sul em 2024. “Sempre os mais vulneráveis são os mais afetados”, frisa. Essa realidade impacta também na utilização de venenos agrícolas e na incidência de zoonoses, o que amplia os riscos à saúde da e do trabalhador. De forma geral, a preocupação também se entende à climatização dos ambientes: “ainda não estão preparados para o calor”.
A “economia do cuidado” e a invisibilidade do trabalho feminino também são questões sociais centrais para a pesquisadora. As mulheres estão “na primeira linha de enfrentamento” em setores essenciais para o bem-estar e a saúde da população, cada vez mais envelhecida e, por consequência, necessitada de atenção profissional. Muitas vezes, alerta Anaclaudia, elas exercem serviços domésticos e de enfermagem sem a proteção social adequada ou mesmo sem remuneração. “É preciso investimento forte na economia do cuidado. Valorizar esse trabalho. Entender isso como algo importante para a economia”, prescreve.
Por um trabalho que faça sentido
A rejeição à visão meramente produtiva, tópica da lógica econômica dominante, é a forma, proposta pela Universidade, de enxergar as relações de trabalho na Instituição. As pessoas que trabalham, explica a coordenadora de Saúde e Qualidade de Vida da UFPel, Thaíse Farias, não devem ser percebidas como meras ferramentas, como expansão das máquinas a serviço da produção capitalista. As pessoas precisam se sentir satisfeitas, compreender a importância social das suas atividades e o papel do trabalho na sua vida, para o seu desenvolvimento social: “O trabalho precisa fazer sentido para aquele que trabalha”, resume.
Em busca de instigar esse reconhecimento na Universidade, a pró-reitora de Gestão com Pessoas da UFPel, Taís Fonseca, observa a valorização das pessoas nos processos de gestão e o incentivo institucional à cultura da participação. “Tudo que acontece dentro da Universidade é pelas pessoas e para as pessoas. Então, nada mais justo do que a gente fazer gestão com elas, com elas no centro de processo participativo”, comenta, ao explicar a recente mudança da nomenclatura para Pró-Reitoria de Gestão com Pessoas, em oposição aos modelos verticais de administração “de Pessoas”.
A UFPel engloba aproximadamente 2,7 mil servidoras e servidores em atividade, 1,6 mil inativos e inativas e mais de 400 pensionistas. As equipes terceirizadas e da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), responsável pela gestão do Hospital Escola da UFPel, também integram esse universo e as ações da Instituição voltadas à garantia de direitos, à capacitação e desenvolvimento da carreira e à saúde. “São três grandes pilares que nos movem no dia a dia”, compara.
A Coordenação de Saúde e Qualidade de Vida, além do trabalho de perícia para afastamento da e do servidor, atua na promoção e prevenção de saúde, desde sintomas de ansiedade e depressão e dificuldades nas relações de trabalho, até questões de segurança, para minimização dos riscos de acidentes. Qualquer pessoa que esteja nessa situação ou identifique em colega pode procurar a assistência da Universidade, presencialmente, pelo e-mail csqv@ufpel.edu.br ou pelos demais canais de comunicação da Coordenação.
O contexto de “retirada de direitos duramente conquistados” por trabalhadores e trabalhadoras, comenta Thaíse, tem mobilizado a Instituição a refletir e organizar o trabalho dentro da Universidade. Um desses movimentos é o processo de revisão dos ambientes de trabalho, iniciado pela Pró-Reitoria, para evitar impactos na saúde física e mental, a partir de intervenções preventivas.
Texto: Jandré Batista
jandre.batista@ufpel.edu.br