Pesquisa liderada por professor da UFPel traz novos dados sobre zika em recém-nascidos
A infecção por zika vírus não pode ser diagnosticada com precisão em recém-nascidos apenas com base no rastreamento de microcefalia, de acordo com o maior estudo de série de casos sobre o tema, liderado pelo professor da Universidade Federal de Pelotas César Victora e publicado na revista científica The Lancet. Os resultados sugerem que sinais e sintomas de alterações neurológicas, indepentemente da circunferência da cabeça, devem ser incluídos nos critérios de rastreamento para detecção de todos os casos de recém-nascidos afetados pela doença.
“Nosso estudo, que incluiu todos os os casos suspeitos de microcefalia em recém-nascidos até fevereiro no Brasil, descartou três em cada cinco casos após uma investigação completa, já que a maioria dos casos acabou sendo, na verdade, de recém-nascidos normais com cabeça pequena. Por outro lado, um em cada cinco dos casos definitivos ou prováveis de zika apresentou valores normais de circunferência da cabeça. O atual foco do rastreamento somente sobre a microcefalia é muito estreito”, explica Victora.
O vírus da zika é conhecido por causar microcefalia, uma malformação congênita que se caracteriza pelo tamanho reduzido da cabeça e do cérebro em recém-nascidos. Após o surto de zika registrado em 2015 no Nordeste do Brasil, o Ministério da Saúde estabeleceu um sistema de vigilância epidemiológica para microcefalia, com a seleção de casos suspeitos com base no perímetro cefálico reduzido dos recém-nascidos. Até 27 de fevereiro, foram relatados 5909 casos suspeitos de microcefalia, incluindo 5554 (94%) nascidos vivos.
No maior estudo de série de casos de suspeita por infecção de zika vírus já realizado até hoje, Victora e colegas utilizaram dados do Ministério da Saúde do Brasil para descrever características clínicas (sexo, idade gestacional, exames de neuroimagem, histórico materno de rash cutâneo e mortalidade) e antropométricas (perímetro cefálico e peso ao nascer) dos bebês nascidos vivos. Ao todo, o grupo revisou todos os 1501 casos suspeitos que haviam sido completamente investigados. Os casos suspeitos foram classificados em cinco categorias de acordo com a certeza do diagnótico de infecção por zika: definitivo, muito provável, moderadamente provável, pouco provável e descartado.
Os resultados mostraram que, em comparação com os 899 casos descartados após a investigação, os 602 casos definitivos ou prováveis tiveram menor perímetro cefálico ao nascer e estavam mais propensos a ter histórico materno de rash cutâneo – erupções na pele materna – durante a gestação (21% versus 61%). Além disso, entre os definitivos ou prováveis, a probabilidade de morrer nas primeiras semanas de vida foi quatro vezes maior.
O aparecimento de rash cutâneo no último trimestre da gravidez foi relacionado a alterações cerebrais, mesmo em recém-nascidos que tinham perímetro cefálico dentro de valores normais. O desenvolvimento do crânio ocorre, em grande parte, por volta da 30ª semana de gestação, o que explica que algumas crianças possam nascer com tamanho normal da cabeça e, ainda assim, apresentar lesões cerebrais importantes. Esta descoberta levanta a possibilidade de que a infecção por zika vírus em recém-nascidos provoque danos neurológicos, segundo os autores do artigo.
Os pesquisadores ressaltam que mais de cem dos casos defintivos ou prováveis apresentaram perímetro cefálico dentro na normalidade e não teriam sido incluídos nas análises se tivessem sido usados pontos de corte menores. “Embora acreditemos que a subnotificação de casos de microcefalia seja rara durante a epidemia, os recém-nascidos infectados com o vírus no final da gravidez podem passar despercebidos devido ao tamanho da cabeça estar dentro da faixa normal. Na verdade, descobrimos que um em cada cinco casos definitivos ou prováveis de zika tinham perímetro cefálico na faixa normal, e não teriam sido inscritos se tivessem sido usados cortes mais específicos”, explica Victora. “Além disso, para um terço dos casos definitivos ou prováveis, não houve história de rash cutâneo durante a gravidez”.
“Nossos resultados sugerem que, entre as gestações afetadas pela infecção por zika, alguns fetos vão ter alterações cerebrais e microcefalia, outros vão ter alterações cerebrais e perímetro cefálico normal, enquanto outros ainda não serão afetados”, afirma Victora. “Um sistema de vigilância destinado a detectar todos os casos de recém-nascidos afetados pela zika não pode se concetrar apenas na microcefalia e no rash cutâneo, e o exame de todos os recém-nascidos durante as ondas de epidemia deve ser considerado”, completa.
Contudo, os autores observam que os resultados devem ser considerados com cautela, particularmente por causa da falta de alguns dados que se torna inevitável no utilização de informações dos sistemas de vigilância de rotina. Os pesquisadores também ainda não podem determinar com precisão o ponto de corte ideal para a circunferência da cabeça, já que o conhecimento sobre a síndrome congênita do zika vírus está evoluindo muito rapidamente.
Os autores apontam que o pico da epidemia de microcefalia ocorreu no final de 2015, cerca de seis a nove meses mais tarde do que o pico da epidemia do zika vírus no Nordeste do Brasil. Desde então, o número de novos casos notificados de microcefalia tem diminuído constantemente. “Como uma nova onda de infecção pelo vírus zika foi registrada no início de 2016 no Sudeste brasileiro, uma segunda onda de casos de microcefalia deverá ocorrer no final deste ano”, projeta Victora.
Em comentário online sobre o artigo, Jörg Heukelbach, do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, e Guilherme Loureiro Werneck, do Departamento de Epidemiologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, escrevem: “Para incorporar novos critérios, além de microcefalia e erupção cutânea durante a gravidez, a fim de detectar todos os casos afetados, sinais e sintomas neurológicos poderiam ser elegíveis, mas muito difíceis de ser obtidos na maioria dos locais por causa da insuficiência de pessoal especializado. O desenvolvimento de um teste serológico preciso que pudesse ser incorporado à rotina pré-natal é fundamental, e sua validação, uma prioridade de pesquisa. Enquanto o surto atual é um exemplo paradigmático de quão rápido a evolução de evidências científicas sistemáticas pode (e deve) mudar o ponto de vista sobre uma doença dentro de poucos meses, é de se esperar que autoridades de saúde pública, e também a comunidade científica, ainda irão lutar por muitos anos contra epidemias de zika e suas consequências no Brasil e em outros lugares”.