Mesa-redonda aborda a necessidade de enfrentamento multidisciplinar ao trabalho infantil
Um dos problemas marcantes da sociedade brasileira, com raízes culturais seculares, consiste na exploração do trabalho infantil. Essa forma de abuso contra crianças e adolescentes, segundo a pesquisa do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE: PNAD, 2019), embora considerada subnotificada, contabiliza mais de 1,8 milhão de casos. Para discutir sobre esse cenário, a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT), promoveu na manhã de terça-feira (31), na Faculdade de Direito, a mesa-redonda “Trabalho Infantil: uma proposta de enfrentamento multidisciplinar”.
A atividade, resultado da cooperação técnica entre MPT e Associação Nacional de Dirigente das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), integrada pela UFPel, proporcionou à comunidade acadêmica do curso de Direito e demais participantes olhares diversos e complementares sobre a exploração do trabalho infantil. Compartilharam as suas experiências a procuradora do trabalho Patrícia Fleischmann, a assistente social do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Ana Caroline Jardim e a psicóloga e psicopedagoga Marisa Guimarães, com a mediação do professor de Direito do Trabalho da UFPel, Jairo Halpern.
A importância do enfoque multidisciplinar e a relevância da discussão proposta foram destacadas pela reitora da UFPel, Isabela Andrade, durante a abertura do evento, em conjunto com o diretor da Unidade Acadêmica, Pedro Moacyr da Silveira. “Muitas vezes a gente amplia os horizontes e o conhecimento quando a gente sai do contexto de sala de aula para eventos como esse, que, em pouco tempo, nos abrem um universo”, elogiou a reitora.
Enfrentamento Multidisciplinar
Ao iniciar o debate, a procuradora do trabalho, Patrícia Fleischmann, apresentou as competências constitucionais do MPT e suas metas prioritárias, definidas para o cenário nacional. Entre estas, pela sua importância e urgência, está o combate ao trabalho infantil. “Precisamos extirpar [o trabalho infantil] da realidade brasileira se agente quiser uma solidária e igualitária como prevê a Constituição”, conclamou.
Essa forma de exploração contra crianças e adolescentes, que mereceriam a atenção “integral, prioritária e absoluta” do Estado e da sociedade, foi definida pela procuradora como “problema cultural”. O seu relato demonstra que o trabalho infantil é muitas vezes aceito para certas parcelas da população, como forma de “moldar o caráter” ou para evitar contextos de vulnerabilidade ainda piores. Essa tolerância seletiva, entretanto, nunca considera os melhores cenários para crianças e adolescentes. “A proteção deve ser absoluta não só para crianças brancas de classe média”, criticou.
O ordenamento jurídico brasileiro, destacou, prevê a proibição de qualquer forma de trabalho até os 14 anos. Dos 14 aos 16, apenas na qualidade de aprendizagem, nos termos definidos pela legislação. Já dos 16 aos 18 anos, o trabalho é possível em situações que não sejam insalubres ou perigosas, entre outras restrições.
O enfrentamento ao problema precisa, segundo a procuradora, transcende o Direito. Os reflexos da exploração do trabalho infantil são identificadas para além da vítima e os seus impactos sentidos na empregabilidade adulta, por consequência dos prejuízos, entre outros fatores, à vida escolar.
O Brasil, lembrou a procuradora, é signatário da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, está a erradicação do trabalho infantil até 2025. A realidade brasileira, no entanto, não se move para esse cenário. A pesquisa do IBGE (PNAD 2019), na avaliação da representante do MPT, apesar de apresentar cenário dramático (mais de 1,8 milhões de casos), inviabiliza o trabalho doméstico e não quantifica realidades ainda piores, como a exploração sexual e o aliciamento para o tráfico de drogas.
A perspectiva do Serviço Social
A assistente social do TJRS, Ana Caroline Jardim, abordou a característica de multidimensionalidade do trabalho infantil, por limitar o desenvolvimento de crianças e adolescentes e os seus projetos de futuro, e as formas mais graves de abuso, recorrentes na realidade do Estado. Também expôs o panorama regional do problema, as raízes culturais da tolerância, a necessidade de enfrentamento coletivo e de políticas públicas de Estado, independentemente do interesse eleitoral de governos. “O trabalho doméstico está na nossa história como construção de sociedade”, lamentou.
Segundo a assistente social, o trabalho infantil nas cidades, embora mais visível, como na venda de produtos nos cruzamentos urbanos, esconde uma realidade muito maior. “É a ponta do iceberg”, alertou. A maior incidência, no entanto, está nas zonas rurais, onde não se tem os mesmos meios de proteção social, como creches e escolas, e de recursos públicos para identificação dos casos.
Por ser uma questão de exercício da cidadania, o enfrentamento ao problema é “tarefa de toda a sociedade”. Um dos caminhos efetivos de acionamento da rede de proteção à criança, recomendou, é o serviço “Disque 100”, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. As ligações, diretas e gratuitas, são recebidas 24h por dia, inclusive sábados, domingos e feriados. Para fazer uma denúncia anônima de violações de Direitos Humanos, basta digitar 100 de qualquer telefone fixo ou móvel.
Os prejuízos ao Desenvolvimento
A psicóloga do TJRS, Marisa Guimarães, expôs as pesquisas científicas acerca das fases do desenvolvimento humano, com o objetivo de refletir sobre os diversos prejuízos cognitivos, fisiológicos e sociais às crianças e aos adolescentes que são explorados para o trabalho. Conforme a sua explanação, baseando-se principalmente nos estudos de Piaget, as quatro fases do desenvolvimento humano (três até os 12 anos), demandam proteções específicas em cada etapa, para evitar consequências para a vida adulta.
Entre os danos a crianças e adolescentes em situação de trabalho, a psicóloga destacou, entre outras, as vulnerabilidades à fratura, em razão do desenvolvimento dos ossos, à toxicidade, pela limitação do sistema respiratório, ao calor, à luz do sol, e a probabilidade de acidentes, devido à visão periférica limitada e à sensibilidade a ruídos. Além das questões corpóreas, ressaltou os efeitos nocivos de “deixar de estudar, brincar e aprender” com outras crianças.