Palestra de Jeferson Tenório aborda o acesso à educação superior, formação literária e desigualdade racial
Um jovem negro, apesar das circunstâncias, ingressa em uma universidade pública no Rio Grande do Sul. O contexto: início dos anos 2000, período de implementação da política de quotas. Naquele espaço, enfrenta preconceito social e o silenciamento da sua cultura. A partir disso, passa a refletir sobre a sua existência, a sua identidade e as suas origens. A trajetória de Joaquim, do romance “De onde eles vêm” (2024), reverbera a experiência do próprio autor, Jeferson Tenório, um dos exemplos de transformação social decorrentes das políticas de ações afirmativas no Ensino Superior. A conversa com o autor na noite de sexta-feira (9), no auditório do Colégio Municipal Pelotense, sobre a jornada do escritor e do personagem, que ilustra a desigualdade racial no Brasil, simbolizou o início do semestre letivo do Centro de Letras e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
A palestra do escritor, o “direito ao encanto e a arte de existir”, organizada em conjunto com a Prefeitura Municipal de Pelotas, abordou as relações entre formação literária, o acesso à educação superior e a desigualdade racial no País. Tais temas foram refletidos da vida do autor para o protagonista de “De onde eles vêm”: “Muito da minha experiência eu emprestei ao Joaquim. A experiência que eu queria ter tido aos 24 anos”, revela.
Jeferson Tenório ganhou notoriedade após o lançamento, em 2020, do romance “O Avesso da Pele”, sobre violência e racismo estrutural no Brasil — quando as práticas discriminatórias são “naturalizadas” nas diversas dimensões da vida social. Venceu e foi finalista, respectivamente, dos prêmios Jabuti e Oceanos, alguns dos principais reconhecimentos literários, em Língua Portuguesa, no âmbito nacional e internacional.
Identidades fixadas e formação do leitor
Joaquim, assim como Jeferson Tenório, ingressa no curso de Letras. Durante a sua formação, acostuma-se a estudar a bibliografia imposta: autores homens, brancos, europeus e originários de outros períodos da história. Em sua jornada acadêmica, o personagem torna-se leitor, para então tentar ser escritor.
A leitura dos clássicos europeus passa a fazer sentido quando ele traduz aquelas histórias para “o seu mundo particular”, o seu círculo de amizades, tão distante daquela realidade acadêmica. “A Universidade não é o único lugar de formação do leitor. A leitura que é significativa se dá nos locais de intimidade”, ensina.
Dessa forma, o personagem percebe o quanto as instituições de ensino não estão preparadas para acolher a diversidade — estudantes com outros saberes e experiências e que enfrentam barreiras para a sua permanência e êxito nesses espaços. Joaquim, então, entende as dinâmicas de poder e aprende “a se comportar”, um corpo estranho em meio à cultura dominante, e a questionar as suas origens. “Ele frustra o pensamento colonial, que reduz as pessoas à cor da pele”, critica o autor.
Para participar daquele mundo, o personagem cria uma “máscara branca”, reflete o escritor ao referenciar a metáfora de Frantz Fanon em “Pele negra, máscaras brancas” (1952). Como resultado, Joaquim começa a se comportar e a se relacionar com uma pessoa branca. “Certamente essa máscara não dura muito tempo. É impossível tentar permanecer alienado”, indica. Ao voltar à sua casa, à própria realidade, o dilema existencialista toma forma, quando o personagem questiona a sua cultura e a sua religião.
Os “ecos existencialistas” em sua obra, explica Jeferson Tenório, demonstram que esses questionamentos não podem fazer com que as origens sejam “apagadas ou esquecidas”. “É o Joaquim, com erros e acertos, tentando se autocriar. Ou seja, existir é uma arte. É uma forma criativa de construir sua própria essência”, sintetiza. Mesmo a população negra, que sofre com “o encarceramento a céu aberto”, por causa da cor de sua pele, têm condições de fazer as suas escolhas, apesar das circunstâncias, defende o autor.
Ações afirmativas transformam vidas
O escritor conta que, a partir da repercussão de “O Avesso da Pele”, a sua vida “mudou radicalmente”. Entretanto, a formação literária, explica, não se faz de “uma hora para outra”. A sua caminhada acadêmica, considera, foi possibilitada principalmente pela sorte de não ter sido vítima da violência racial e o incentivo de pessoas próximas, mas também pela política de ações afirmativas. Antes da passagem pelos espaços universitários, seu objetivo profissional era se tornar gerente da rede de lanchonetes da qual trabalhava à época.
Jeferson Tenório é o primeiro egresso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) pela ações afirmativas. “Eu não estaria aqui se não fossem as quotas”, celebrou, ao valorizar o acesso, no meio acadêmico, de pessoas originárias de regiões marginalizadas.
Oralidade e representatividade
Para além do meio acadêmico, a sua formação literária começou antes do acesso aos livros, através da oralidade, nas experiências culturais de matriz africana. Os terreiros, “quase como uma instalação artística”, naturalizaram o contato com o fantástico, o sobrenatural. Dessa forma, inicialmente, a formação de leitor “se deu pelos ouvidos”. Os livros chegaram já na vida adulta.
Nesse ponto, o escritor, ao referenciar a autora nigeriana Chimamanda Adichie, critica a forma de apreensão do conhecimento típicas do Ocidente. Baseada no visual, expressam-se mediante dinâmicas de identificação, julgamento e colonização. Diferentemente, a oralidade, a exemplo das práticas culturais de matriz africana, é marcada pela valorização da experiência, da ancestralidade. A cultura oral também foi importante para o autor por meio da representatividade possibilitada pelo rap — o grupo Racionais MC’s, em especial. “Eu aprendi a ter orgulho da minha cor, da minha origem”, lembra, ao iniciar na música o seu letramento social e poético.
Universidade pela Justiça Social
O reitor em exercício da UFPel, Eraldo Pinheiro, avaliou o evento como “único”, histórico” e “emocionante”. “Estamos vivendo um momento histórico muito importante no sul do Brasil, pelas possibilidades que foram criadas por muitas pessoas ao longo do tempo para que estivéssemos aqui”, comemorou. Conforme o gestor, a Instituição tem desenvolvido muitos projetos relacionados às ações afirmativas, conjuntamente com os movimentos sociais, com impacto em seu território de atuação e que servem de modelo para outras instituições. A UFPel é a primeira universidade pública com 30% de reserva de vagas, para ações afirmativas, nos concursos de professoras e professores. Na pós-graduação, entre outras iniciativas, são concedidas bolsas para estudantes ingressantes pela política de quotas.
A pró-reitora de Ações Afirmativas e Equidade da UFPel, Cláudia Daiane Molet, celebrou a representatividade negra nos espaços de poder, no Executivo Municipal e na UFPel, e o simbolismo do evento para o histórico do município. “É uma cidade eminentemente negra, de bairros negros, de pessoas negras. Essa Pelotas negra, quilombola e indígena merece este momento”, enfatizou. Na mesma linha, a professora da UFPel e organizadora do evento, Vanessa Damasceno, classificou a vinda de Jeferson Tenório à Instituição como um “sopro de esperança”, pelos temas e a lutas sociais que representa.
Texto: Jandré Corrêa
Fotos: Kátia Dias