Exposição ‘8 de Janeiro: Restauração e Democracia’ chega a Pelotas
Domingo, 8 de janeiro de 2023. O Brasil vive o fim da primeira semana de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após mais uma eleição marcada pela polarização política. Uma manifestação contrária ao governo avança pelas ruas de Brasília e, poucas horas depois, o país é surpreendido por cenas chocantes de centenas de pessoas invadindo, vandalizando e destruindo as sedes dos três poderes em Brasília.
A partir daí, o restabelecimento da ordem democrática passaria, também, pela restauração de 20 obras de arte – patrimônio cultural brasileiro, violentamente danificadas no episódio. O trabalho, conduzido por uma equipe de professores, estudantes e técnicos do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFPel, coloca a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e a cidade de Pelotas como protagonistas desse momento marcante da democracia brasileira e é o tema da exposição fotográfica “8 de Janeiro: Restauração e Democracia”, inaugurada no saguão da Prefeitura de Pelotas, na última quarta-feira (30).
“Vimos as imagens do que estava acontecendo naquele domingo, em Brasília, e nosso grupo começou a encher de mensagens. Era demais para nós, que trabalhamos com patrimônio, ver tudo aquilo destruído. Só pensávamos que tínhamos que fazer algo, ir para lá, salvar aquilo tudo, que é patrimônio da humanidade”, relembra Andréa Bachetttini, professora e coordenadora do Laboratório Aberto de Conservação e Pintura (Lacorpi) da UFPel e do projeto “8 de Janeiro: Restauração e Democracia”.
Por iniciativa da comunidade acadêmica do curso de Conservação e Restauro, a UFPel enviou documentos aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), colocando-se à disposição para atuar na restauração do patrimônio deteriorado. Inicialmente, a resposta foi de que já havia equipes encarregadas do trabalho. Meses depois, em agosto de 2023, o Iphan voltou a contatar Bachettini, desta vez com um convite para que a UFPel assumisse o restauro das obras. “Foi uma decisão pensada a de ser uma universidade a protagonizar esse trabalho. Por toda a representatividade que isso tem no contexto dos ataques, pela valorização da ciência, da cultura, da arte”, explica a Coordenadora.
Em outubro de 2024, pouco mais de um ano depois, os trabalhos foram concluídos e as obras restauradas, devolvidas ao patrimônio público. “Foi muita violência que essas obras sofreram. A ‘Vênus Apocalíptica Fragmentando-se’, da Marta Minujín, foi lançada como uma bola de canhão do terceiro andar e encontrada nos jardins do Palácio do Planalto no chão. A ânfora (vaso antigo com duas alças) foi quebrada em mais de 180 pedaços”, relata Andréa. Ela explica que algumas obras foram propositalmente deixadas sem restauração, enquanto registro histórico, como o quadro “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo, que foi totalmente pisoteado e está exposto, assim, em uma vitrine no Palácio.
Durante meses, a equipe do Lacorpi restaurou as 20 obras listadas a seguir. A jornada está documentada na Exposição, com textos e registros fotográficos feitos no Palácio da Alvorada, onde o laboratório foi instalado. A curadoria é dos professores da UFPel Lauer Santos, Roberto Heiden e Renan Espírito Santo. As fotografias são da professora da UFPel e coordenadora-adjunta do projeto, Karen Caldas, do fotógrafo Nauro Júnior e de Mariana Alves (Iphan). A visitação à Exposição é gratuita e pode ser feita de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, no saguão principal da Prefeitura de Pelotas.
Obras restauradas
- “Galhos e Sombras” (1970), de Frans Krajcberg – escultura em madeira pintada;
- “O Flautista” (1961), de Bruno Giorgi – escultura em bronze e base em granito;
- “Matriz e grade no 1° plano” (1976), de Ivan Marquetti – óleo sobre tela;
- “Mulatas à mesa” (1962), de Emiliano Di Cavalcanti – pintura em óleo sobre tela;
- “Retrato do Duque de Caxias” (década de 1930), de Oswaldo Teixeira – óleo sobre tela;
- “Rosas e Brancos Suspensos” (1970), de José Paulo Moreira da Fonseca – óleo sobre tela;
- “Casarios”, de Dario Mecatti – óleo sobre tela;
- “Sem título”, de Dario Mecatti – óleo sobre tela;
- “Idria”, autoria não identificada – cerâmica (Majólica Italiana);
- “Cena de Café” (1978), de Clóvis Graciano – óleo sobre tela;
- “Paisagem do Rio” (atribuído), de Armando Viana – óleo sobre tela;
- “Vênus Apocalíptica Fragmentando-se” (1983), de Marta Minujín – escultura em bronze;
- “Cotstwold Town” (1958), John Piper – óleo sobre tela;
- “Borboletas e Pássaros” (atribuído) (1965), de Grauben do Monte Lima – óleo sobre tela;
- “Bird (Pássaro)” (1955), de Martin Bradley – guache sobre papel;
- a 20. “Músico 01 – 05” (atribuído) (1963), de Glênio Bianchetti – óleo sobre madeira.
Com a exposição em Pelotas, a UFPel pretende compartilhar com a comunidade local a importância do trabalho prestado ao país. “Essa exposição mostra uma experiência histórica de resistência, de defesa da democracia. A entrega das obras restauradas representou a entrega da esperança no nosso povo, na nossa luta pelo estado democrático de direito”, celebra a reitora da UFPel, Ursula Silva. “Foi uma experiência profissional maravilhosa, muito desgastante, mas muito enriquecedora. Foram mais de 2 mil quilômetros percorridos para montar uma estrutura de laboratório da UFPel em Brasília, dentro do Palácio da Alvorada. Estamos muito movidos pela emoção de entregar esse projeto, enquanto universidade, para o nosso país”, avalia Bachettini.
Educação Patrimonial
Além da restauração das obras vandalizadas e da divulgação do trabalho em diversos formatos, como o documentário, que será lançado em breve, o projeto “8 de Janeiro: Restauração e Democracia” tem um eixo ligado à educação patrimonial. Essas ações buscam conscientizar a população, especialmente crianças e adolescentes, sobre o valor do patrimônio cultural. “Queremos que eles percebam o pertencimento, enquanto donos desse patrimônio (o público, que foi danificado), mas também exercitar a valorização dos seus patrimônios locais, comunitários”, explica a educadora patrimonial Liza Bilhalva. Ela desenvolveu ações com estudantes da Universidade de Brasília (UnB) e com alunos do ensino fundamental da rede pública do Distrito Federal.
Uma das atividades, à mostra na Exposição, entregava a crianças e adolescentes réplicas quebradas da ânfora “Idria”, simulando a forma como os restauradores a encontraram. Os estudantes recuperaram e customizaram as peças. “Nos surpreendemos com o resultado porque, além de restaurarem as peças, eles deram conceitos a elas. Um dos alunos pintou na ânfora o céu de Brasília com as queimadas, que estavam acontecendo naquele momento. Foi um choque positivo para nós”, conta Antonio Ramos, estudante de Conservação e Restauro da UFPel, que orientou a oficina.
As atividades educativas do “8 de Janeiro: Restauração e Democracia” serão, em breve, replicadas em escolas da rede pública de Pelotas, com a participação da equipe do Programa de Educação Tutorial (Pet) Conservação e Restauro da UFPel.
Livro e Aula inaugural
Na última quarta-feira (30), outros dois eventos do projeto aconteceram. O primeiro foi o lançamento do livro “Restauração: Democracia, Preservação e Memória”, organizado pelas professoras Andréa Bachettini e Karen Caldas, com coordenação editorial de Gabriela Mazza. Com uma perspectiva humanista e o objetivo de destacar os impactos do vandalismo e o significado da restauração das obras, o livro apresenta um amplo registro textual e visual do trabalho da equipe do Lacorpi, com contribuições de diversos autores. Em breve, exemplares do livro estarão disponíveis nas Bibliotecas da UFPel.
Em seguida, a aula inaugural do curso de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da UFPel encerrou o dia. Com o tema “As 20 obras de arte restauradas pelo Lacorpi e o trabalho com a história da arte no contexto da valorização das instituições democráticas”, o professor Roberto Heiden compartilhou com estudantes do Curso as experiências vividas. “Esse projeto representa a importância da universidade pública, do conhecimento e do trabalho coletivo, da arte, da cultura, da memória e do patrimônio”, afirmou.
Reportagem por Gabriela Silva – Jornalista/CCS
Fotos por Katia Dias – Fotógrafa/CCS e Gabriela Silva – Jornalista/CCS