Data representa histórico de lutas pelo direito de existir: 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTI+
Pelo mundo e em diversos pontos da história, a luta pelo direito de existir da população LGBTI+ tem encontrado na ocupação das ruas das cidades uma das formas de expressão do orgulho de ser quem se é. As celebrações ao longo do ano, comumente organizadas em Paradas da Diversidade, exigem respeito, reconhecimento, democracia e o acesso à cidadania: “o direito a ter direitos”. Internacionalmente, 28 de junho simboliza a resistência à opressão do Estado: o Dia do Orgulho da comunidade lésbica (L), gay (G), bissexual (B), transgênero, transexual e travesti (T), intersexual (I) e de outras identidades (+) não representadas pelas letras que compõem a sigla.
A data remonta à resistência à repressão policial no bar Stonewall Inn, nos Estados Unidos, em 1969. O estabelecimento funcionava como um ponto de encontro da população periférica trans, gay e lésbica. Movimentos reivindicatórios como esse, de mesma importância histórica, explica o coordenador do Centro de Memória LGBTI da UFPel “João Antônio Mascarenhas”, Marcio Caetano, emergiram em diversos países, inclusive no Brasil durante a ditadura militar. Apesar da data internacionalmente conhecida, as ações de celebração do orgulho LGBTI+ são realizadas durante vários momentos do ano, em diversos lugares do mundo.
Entre celebração e reivindicação, independentemente do momento no calendário, a saída às ruas manifesta o orgulho da própria identidade e exige o fortalecimento dos valores democráticos. “Não existe democracia”, alerta o professor da UFPel, quando a cidadania não alcançar a todas as pessoas. As Paradas do Orgulho e da Diversidade expressam, assim, que integrar a comunidade LGBTI+ não é doença, motivo para vergonha ou discriminação por parte da sociedade e do poder público.
A sua caracterização festiva, conforme o coordenador do Centro de Memória LGBTI+, faz das Paradas do Orgulho e da Diversidade uma expressão essencialmente brasileira: a dança e a música têm lugar na cultura nacional mesmo em contexto de sofrimento e violência. No Brasil, em 2024, uma pessoa LGBTI+ foi morta a cada 30h, segundo o relatório produzido por organização não governamental, o Grupo Gay da Bahia, considerado o pior índice em escala mundial. Os números representam cerca de 9% a mais em relação ao ano anterior.
Importância histórica silenciada
A emergência do movimento LGBTI+, na década de 1970, e a redemocratização brasileira contaram com a contribuição local. Pessoas expoentes nessa mobilização cidadã, entretanto, não têm sido reconhecidas pela população e pelas narrativas oficiais. Um desses exemplos, avalia Marcio Caetano, é a atuação do pelotense João Antônio Mascarenhas, ativista do movimento LGBTI+ que contribuiu com o processo que levou à Assembleia Constituinte de 1987-1988. “Figura completamente apagada e profundamente emblemática no movimento social brasileiro”, definiu, ao elogiar a sua participação inédita em audiência pública que buscava a criminalização da homossexualidade.
O silenciamento das histórias que marcaram o processo motivou a produção de um documentário no Centro de Memória LGBTI, que leva o nome do ativista pelotense, para contar a emergência do movimento pelos direitos sexuais no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. O esforço durante quatro anos deu forma ao audiovisual “Quando Ousamos Existir”, dirigido por Cláudio Nascimento e Marcio Caetano.
A produção universitária, reconhecida em premiações internacionais, revela as implicações entre a trajetória da redemocratização brasileira com os movimentos LGBTI+, ao apresentar a voz de seus protagonistas. A equipe, para isso, realizou cerca de 200 entrevistas com lideranças LGBTI+, em diversas regiões do País. Além do filme, os depoimentos na íntegra têm sido disponibilizados no canal do Museu no Youtube.
“Ocupar as cidades e exigir cidadania”
Em entrevista, o pesquisador da UFPel da área de gênero e sexualidade, políticas públicas e cidadania, Marcio Caetano, explica sobre a importância das Paradas do Orgulho e da Diversidade, avalia os desafios e os avanços para o acesso a direitos por parte da comunidade LGBTI+, atualmente dependente do Poder Judiciário para assegurar a sua proteção estatal.
Ele também propõe reflexão sobre o papel das universidades e a necessidade de reparação histórica a essa parcela da população, na forma de ações afirmativas. Por fim, deixa uma mensagem de incentivo para quem, diante do contexto de preconceito e violência, ainda está em processo de sentir orgulho e de viver a sua verdade.
O que se comemora em 28 de junho? Por quê?
A sigla LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexos e outras dissidências sexo-gênero) remete a populações com demandas e especificidades muito grandes, que inclusive se encontram, mas também se separam muito profundamente. O que talvez unifique todas essas populações é exatamente a ideia de que elas ainda sofrem uma ausência de reconhecimento por parte da sociedade, no Brasil e no mundo.
Se algumas agendas sociais são facilmente debatidas e se desdobram em políticas públicas, as agendas LGBTI+, diferentemente, ainda são atravessadas por muita luta dos sujeitos que integram essas populações. Quando se fala de orgulho, fala-se primeiramente de uma necessidade de reconhecimento. O que você diz que é — lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, pessoa intersexo, entre outras dissidências sexuais — não é motivo de vergonha, mutilação, patologia ou tratamento.
O Dia do Orgulho é mais do que necessariamente a demarcação pública de uma existência — ou seja, de as pessoas irem para a rua, promoverem paradas do orgulho e da diversidade. É, principalmente, o autoconhecimento daquilo que eu digo que sou e esse autoconhecimento como uma possibilidade de reivindicação política e cidadã.
Então, a importância do Dia do Orgulho não é somente para o sujeito, mas também para o aprimoramento da democracia e, com isso, a ampliação do próprio entendimento de cidadania. Não existe democracia enquanto não existirem sujeitos que não possam viver a sua cidadania plena.
Como surgiu o movimento celebrado em 28 de junho?
Poderíamos dizer que, se existe um marco inicial, foi a rebelião de Stonewall Inn, um bar [Nova Iorque, em 1969] que era frequentado sobretudo pela população periférica trans, gay e lésbica. O bar sofria batidas policiais constantes. Não era diferente no Brasil em plena ditadura militar. Tanto é que aqui no Brasil a gente tem um marco tão importante quanto esse do Stonewall, quando houve a ocupação [em 1968] do restaurante Ferro’s Bar [Restaurante na área central de São Paulo frequentado majoritariamente por lésbicas e bissexuais].
O [marco] Stonewall Inn veio da rebelião da população que frequentava esse bar às constantes batidas policiais que não somente fechavam o estabelecimento, mas levavam a população que ali frequentava à prisão. Os frequentadores, naquele contexto, rebelaram-se e fizeram uma grande manifestação contra a repressão policial, algo que também acontecia no Brasil e em tantos outros lugares do mundo.
Ainda que exista esse marco lá, as agendas do orgulho têm sido reconfiguradas no mundo todo. No Brasil, a gente tem paradas do orgulho LGBTI+ praticamente o ano todo. Rio Grande promove em janeiro. Em Pelotas, a última foi em novembro [a 23ª Parada da Diversidade de Pelotas, em 24 de novembro de 2024].
Pelotas é uma cidade com uma larga trajetória de mobilização LGBTI+. Inclusive poderíamos dizer que a origem do movimento LGBTI+ brasileiro tem muito de Pelotas. Basta lembrar da importância do advogado João Antônio Mascarenhas. Quem ler “50 tons de rosa: Pelotas no tempo da ditadura” (Lourenço Cazarré, 2016) vai conhecer um pouco da emergência dos movimentos daqui, na década de 1970, em plena ditadura militar. Esse movimento em Pelotas é muito pujante, muito forte, muito vivo.
Pode-se dizer que a rebelião de Stonewall gerou as Paradas do Orgulho no mundo?
Eu diria que é mais forte do que isso. É o direito de existir e a cidadania que impulsionaram as Paradas. As Paradas existem para dizer para a sociedade: “por mais que alguns de vocês não queiram que nós estejamos aqui na cidade, nós vamos ocupá-la. E não vamos ocupá-la somente com os nossos corpos festivos, mas vamos com a festa, que é uma característica que nos marca, exigir cidadania”.
Nada é mais brasileiro do que as paradas do LGBTI+. Porque se tem uma coisa que marca o Brasil são as suas manifestações festivas. Isso, ainda que pouco debatido, é uma característica cultural nossa. A gente gosta de música, de dançar, mesmo quando isso é atravessado de muita dor. Nas Paradas, a gente pega isso, que caracteriza o Brasil, e transforma em Parada do Orgulho LGBTI+. Nada mais representativo de ter orgulho do que ocupar as ruas dançando. Se é para ter orgulho tem de ser com alegria.
Qual é a importância das universidades para a agenda LGBTI+?
A universidade é uma instituição importantíssima. Ela não é responsável pelas identidades, mas o que ela diz sobre as identidades assume caráter de verdade e isso deve ser refletido. Durante anos, a população LGBTI+ não gozou de status de cidadã porque a universidade também dizia que éramos doentes. Como “doentes”, deveríamos sofrer intervenção médica e tratamento estatal. O Estado, como instituição mais ampla, acompanhou a universidade.
Então, o que a universidade produz e fala sobre a população do LGBTI+ tem um impacto profundo. Não é somente um sujeito que ouve e lê aquilo que a universidade manifesta sobre ele, mas também quem elabora a própria política pública para ele.
A universidade, primeiramente, precisa reconhecer o seu papel político e o papel político do que ela fala enquanto Ciência para a sociedade. Ela também, talvez o mais importante, deve reconhecer os danos que produziu a essa população ao afirmar a sua condição de “doente”, por exemplo. A partir desse reconhecimento, é necessária a elaboração de políticas de inclusão e permanência dessas populações, principalmente trans e intersexo, nos seus espaços.
As ações afirmativas, por exemplo, precisam passar principalmente pelas populações transexuais e travestis. A universidade tem cota para a população trans na pós-graduação, mas isso precisa avançar para a graduação. A gente vê essa necessidade quando não se observa número significativo de pessoas trans na pós-graduação. A cota para pessoas trans na graduação não é um favor da universidade; é uma forma de reconhecer o dano produzido e buscar a reparação histórica e social.
Quais os desafios para que a comunidade LGBTI+ tenha acesso a direitos? No que é preciso avançar como sociedade?
No Brasil, a agenda LGBTI+ tem avançado sobretudo por conta do Poder Judiciário. Do ponto de vista do Poder Legislativo, a pauta avançou praticamente nada no Brasil desde a redemocratização [1988].
Existem algumas leis isoladas, que são leis mais amplas, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a Lei Maria da Penha, por exemplo, que vão trazer [proteção], de alguma forma, a setores da população LGBTI+. Tirando esses dois marcos legais, não existe lei federal que reconheça a existência LGBTI+.
Então, quando se pensa em avanços necessários, é preciso marcar que a cidadania LGBTI+ ainda é restrita no Brasil, pela ausência de legislação que dê conta de não somente garantir o direito de existir — não é à toa que o Brasil é um dos países que mais mata populações LGBTI+, sobretudo trans —, mas também a dignidade. Porque não é só o direito de existir, mas o direito de existir com dignidade.
No campo Legislativo, há um hiato. Isso reverbera na ausência de políticas públicas. A política pública para a população LGBTI+ ainda é o resultado de políticas de governo, não políticas de Estado, porque não existe uma legislação que obrigue os governos a promoverem políticas específicas. O grande desafio hoje é o reconhecimento do Estado brasileiro, por meio do Poder Legislativo, principalmente, da necessidade de legislar sobre o direito de existir e, portanto, da cidadania de pessoas LGBTI+ no Brasil.
Outro grande desafio, imprescindível, é a empregabilidade das pessoas trans. As populações transexuais e travestis no Brasil ainda são profundamente marginalizadas e sem emprego. O Brasil hoje vivencia o emprego pleno: a taxa de pessoas ocupadas é uma das mais altas, principalmente nos últimos dez anos, mas isso não se observa com a população trans.
O emprego da população trans ainda é, majoritariamente, a prostituição, pela baixa escolaridade, pela dificuldade de ingresso no mercado formal de emprego. Essa situação ocorre pela ausência de uma política pública, que é atravessada pelo Poder Legislativo. Sem leis, a população trans fica vulnerável à concepção ideológica do Poder Executivo.
Que mensagem deixar para quem ainda está em processo de sentir orgulho de quem se é?
Penso que o maior desafio que temos enquanto sujeitos é se olhar no espelho e se ter orgulho do que se é. Então, em um país, em uma sociedade, que busca nos envergonhar, a principal mensagem que eu diria pra todas as pessoas é que elas tenham orgulho do que elas são. Afinal, se elas têm coragem de dizer o que são, é porque elas são muito fortes, se amam muito, desejam viver e sonhar. A importância do Dia do Orgulho é sobretudo se olhar no espelho e dizer “eu te amo” e, “ao dizer eu me amo”, ocupar a rua sem medo de existir. Isso é político e profundamente necessário para a democracia.
Para o estudo sobre diversidade sexual e de gênero
A Universidade é um dos espaços de reconhecimento da existência LGBTI+ e de promoção de sua inclusão. Com esse objetivo, o Sistema de Bibliotecas criou um fundo, em homenagem à antropóloga cofundadora do movimento LGBTI+: Rosely Roth. Dessa forma, a biblioteca do Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Artes e Linguagem (Cehus) da UFPel (localizada na rua Alberto Rosa, 117) inaugurou em 2024 uma seção de estudos sobre gênero e sexualidade. No local, existem livros e revistas para quem tiver interesse no estudo e na pesquisa sobre a trajetória do movimento LGBTI+.
Texto: Jandré Batista