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Composição da fauna aquática da costa sul do Brasil mudou drasticamente, aponta pesquisa

Um estudo realizado com a participação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) indica que a sobrepesca e outras práticas insustentáveis mudaram drasticamente a composição da fauna aquática na costa sul do Brasil, onde as comunidades indígenas por milhares de anos desfrutaram de ecossistemas marinhos abundantes e diversos, repletos de peixes grandes e predadores que desempenharam um papel importante em sua segurança alimentar. ⁠

O trabalho arqueológico, liderado por Thiago Fossile, da Universidade Autônoma de Barcelona (ICTA-UAB), com a parceria da UFPel, comparou restos de peixes que datam de 9,5 mil anos com as populações de peixes atuais, encontrando uma diminuição significativa em muitas das espécies, principalmente tubarões e raias. ⁠

A pesquisa tem o objetivo de conhecer os recursos e a biodiversidade explorada pelas populações indígenas do passado, antes da chegada dos europeus, para entender que aspectos vêm se perdendo hoje em termos de biodiversidade. De acordo com o professor Rafael Milheira, da UFPel, esse é o mote da arqueologia contemporânea. “A gente mostra um cenário de riqueza ambiental, as tecnologias sustentáveis utilizadas pelas populações indígenas, e mostra o nosso cenário atual, de declínio”, afirma.

Partindo de uma compilação de dados contidos em inúmeros trabalhos publicados a partir dos anos 1960 de diferentes arqueólogos sobre a costa sul brasileira, o estudo traz dados sobre a fauna dos sítios arqueológicos pré-coloniais, com destaque especial para os peixes, para compreender a biodiversidade marinha e lacustre explorada pelas populações indígenas do passado comparada à atual. A avaliação foi feita considerando o litoral dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Foram analisados mais de 50 sítios arqueológicos, de culturas indígenas diferentes, de grupos pescadores – sambaquis, construtores de cerritos e guaranis –, dos quais foi possível extrair informações sobre a alimentação desses grupos no período de 9 mil anos atrás até o período da colonização europeia.

As principais espécies presentes em todos os sítios arqueológicos estudados foram a corvina, a miraguaia e o bagre, o que evidencia a disponibilidade desses peixes e o gosto dos povos em consumi-los. A tainha, por exemplo, ligada à pesca atual, não era consumida com tanta frequência pelas populações indígenas do passado.

Com a chegada dos europeus, porém, há uma mudança de comportamento em relação aos recursos marinhos e lacustres na costa brasileira, com um mercado internacional que se abre. E então a tainha começa a receber mais atenção.

Mudanças

De acordo com os pesquisadores, apesar de não estarem extintas, nota-se uma mudança de ocupação das espécies – elas não são tão encontradas na região como eram antigamente. “No ambiente passado, há cinco, três mil anos, as espécies ocorriam com mais frequência nessa região do que hoje”, destaca Fossile.

Diminuição de peso e tamanho também foram apontadas. “As espécies foram tão exploradas que não conseguem mais adentrar nos ambientes que adentravam antigamente”, ressalta Milheira, ao referenciar relatos de miraguaias de mais de um metro encontradas na praia do Laranjal nos anos 1970 e 1980 – que se ocorrem hoje, é em proporções menores. “A biodiversidade não necessariamente diminuiu, porque essas espécies ainda existem, mas ela não está sendo consumida para fins alimentares pelas populações modernas”, aponta o professor da UFPel.

O estuário da Lagoa dos Patos, por exemplo, é considerado um berçário de espécies marinhas, como a miraguaia e a corvina, que adentram em época reprodutiva, desovam, passam alguns meses e voltam para o mar. “Não há diminuição da biodiversidade. Há diferenças na posição em que esses animais conseguem procriar e viver, porque estão sendo explorados. A cada ano a quantidade de peixes pescados na Lagoa dos Patos é menor”, indica Milheira.

Na época pré-colonial, há quatro ou cinco mil anos, as espécies maiores eram mais frequentes em captura, se comparado ao período moderno. As diferenças ao longo do tempo apontam para a redução, tanto em tamanho, quanto em quantidade e locais onde os animais aparecem. “São cada vez mais raros e menores. A gente associa toda essa diferença com a degradação do meio ambiente e a sobrepesca”, alerta Fossile.

Os pesquisadores destacam ainda que, conforme a preservação de material encontrado, as regiões central e norte de Santa Catarina têm mais diversidade de espécies identificadas do que a Lagoa dos Patos, o que pode indicar que as populações sulistas eram mais seletivas do que as do litoral catarinense.

Entender o passado para preservar o futuro

Para os autores, o estudo evidencia o papel da arqueologia para discussões contemporâneas, formulação de políticas públicas, conservação do meio ambiente, promoção do bem-estar social, redução da pobreza e seguridade alimentar. “Com esse trabalho a gente consegue contribuir contando a história da pesca e das mudanças nos últimos cinco mil e quinhentos anos, principalmente, e trazer isso a público, ao planejamento, à gestão da pesca e à gestão do ecossistema”, ressalta Fossile.

Com as análises, é possível indicar áreas consideradas hotspots – lugares com maior biodiversidade – e orientar, por exemplo, a criação e manutenção de unidades de conservação, lugares que deveriam estar sendo preservados por excelência, ou mesmo indicação de locais onde pescar ou não para que se preserve a biodiversidade do litoral brasileiro.

Além de enfatizar a importância de incorporar dados arqueológicos nos debates sobre conservação no Brasil, o estudo reforça a necessidade da preservação dos sítios arqueológicos para o conhecimento da história das populações indígenas sul-americanas e para a compreensão das relações sustentáveis entre humanos e ambientes costeiros.⁠

A arqueologia é uma das poucas fontes de informação disponíveis para elucidar a distribuição de espécies e abundância relativa no passado, particularmente em países com deficiência de dados como o Brasil.⁠ Os resultados fornecem a evidência mais direta de quais espécies foram submetidas a esforços de pesca de longo prazo e são essenciais para informar os esforços de conservação marinha.⁠ “Temos basicamente 50 anos de estudos de sítios arqueológicos que contam uma história da pesca nessa região, principalmente dos últimos cinco mil e quinhentos anos. A compilação dos dados se torna uma ferramenta útil, além dos sítios arqueológicos, para essa discussão da arqueologia contemporânea, ao contribuir para questões de política pública, conservação de meio ambiente, de espécies, biodiversidade, cultura, em uma área muito importante para compreendermos esses aspectos no âmbito da América Latina”, pontuou Fossile.

Participação

O trabalho integra o projeto de pesquisa liderado por André Colonese, também da UAB, que desenvolve pesquisas arqueológicas com interesses ambientais em toda a costa brasileira, com recursos do Conselho Europeu de Pesquisas, ligado à Unesco.

A UFPel foi parceira do projeto através do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia (LEPPARQ), que enviou vários tipos de amostras para serem analisadas na Espanha, como ossos e restos de peixes. Também colaborou na interpretação de dados referentes à pesca das populações indígenas pré-coloniais.

O trabalho foi publicado na revista acadêmica Plos One. ⁠O estudo também conta com a colaboração da Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität (Alemanha), Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio Grande, Universidade da Região de Joinville e Universidade Federal de Santa Maria.⁠