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UFPel elabora Inventário Nacional de Referências Culturais – Lida Campeira nos Campos Dobrados do Alto Camaquã

Foto: Guilherme Santos

Um trabalho de amplas proporções, com diversos matizes e uma malha de conexões possíveis. Esse é o âmago do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) – Lida Campeira nos Campos Dobrados do Alto Camaquã, elaborado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Composto por variadas frentes e levado adiante por uma equipe interdisciplinar que reflete a natureza abrangente e profunda do projeto, o INRC busca identificar e valorizar os detentores dos saberes e fazeres e documentar as lidas campeiras nessa área do Rio Grande do Sul, que fica na Serra do Sudeste. Trata-se de envolver, num mesmo olhar, relações humanas, animais, objetos, ambientes, malha de habitantes e tantos outros aspectos que caracterizam essas lidas. O documento tem três volumes e aproximadamente 1,5 mil páginas, além de um anexo que traz as produções da equipe de pesquisa. O Relatório Final foi encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 17 de dezembro, Dia Nacional do Bioma Pampa.

Foto: Luciene Mourige Barbosa

O Inventário tem o objetivo de identificar, documentar e construir conhecimento sobre a lida campeira para fins de registro como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro. Sob a batuta do curso de Bacharelado em Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Antropologia, o estudo atual é um desdobramento de uma primeira fase, que iniciou em 2010 e foi realizada nos chamados “Campos Lisos”, região de Bagé. A proposta tem financiamento e cessão de metodologia do Iphan.

Desde então o grupo realiza trabalho etnográfico e acompanhamento das atividades realizadas pelos sujeitos detentores dos ofícios, denominados “campeiros”, que vivenciam ou vivenciaram a lida da pecuária. São eles

Foto: Marília Floôr Kosby

proprietários de terras – de grandes extensões, médias ou propriedades familiares ou de uso comunitário, como no caso das Comunidades Quilombolas – e/ou peões campeiros, trabalhadores e trabalhadoras rurais no sul do Rio Grande do Sul que desempenham ou desempenharam as atividades de doma, pastoreio, esquila, ofício do guasqueiro, tropeada, artesanato, lida caseira, entre outras, como carneada, cutelaria, agricultura de cercado e produção tradicional de erva-mate. De acordo com os pesquisadores, a lida campeira abarca uma série de atividades, configurando-se como um modo de vida.

Além das interlocuções com essas pessoas, viventes da pampa detentores da cultura campeira, os pesquisadores também travaram diálogo com associações e organizações representantes das populações tradicionais na pampa, via representantes sindicais, de organizações ambientais, de assistência técnica e de produtores rurais.

Identificar, reconhecer e documentar
A continuidade do trabalho, voltado a inventariar os manejos nos campos do Alto Camaquã, iniciou em 2016, após a fase de devolutivas para a comunidade, a partir de uma solicitação da Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (Adac). Esta etapa do trabalho envolve os municípios de Bagé, Caçapava do Sul, Canguçu, Encruzilhada do Sul, Lavras do Sul, Piratini, Pinheiro Machado, Santana da Boa Vista, Jaguarão, Candiota, Hulha Negra e Dom Pedrito.

O desdobramento do projeto – agora voltado aos “Campos Dobrados”, de pedra, parte do entendimento de que camperear nesses lugares é uma experiência diversa

Marcação – Bagé – Foto: Ana Sonaglio

da que ocorre nos “Campos Lisos”. “A primeira fase teve muita interface com a história. Quando se coloca os Campos Dobrados, a dimensão do ambiente desponta. A interlocução nesse segundo momento foi mais forte com a geografia”, analisa a coordenadora do INRC Lida Campeira, professora Flávia Rieth. Segundo ela, a construção do trabalho interdisciplinar envolveu historiadores, geógrafos, biólogos e profissionais de variadas formações, dialogando com diversos personagens, trazendo à baila questões sociais e ambientais. Trata-se de pensar uma Pampa pluriversa. “São diferentes ambientes. Há campos lisos, pedras, várzea (banhado), areia. E essa mesma diversidade de ambientes influi nas práticas”, observa.

Paisagem Campos de Pedra – Palmas, Bagé – Foto: Guilherme Santos- Sul21

Os campos de pedra caracterizam-se pela pouca cobertura de terra e, assim, são considerados mais empobrecidos. Mas neles estão pecuaristas familiares, quilombolas e povos indígenas, populações consideradas guardiãs dessa área que, ao mesmo tempo, são as mais preservadas do Bioma Pampa. “Estamos pensando em saberes que constituem essa área cultural. E a cultura não é algo que se perde, mas se transforma e constitui as pessoas e os ambientes. Temos uma diversidade de população que habita, uma diversidade de manejos e ambientes que muitas vezes não visualizamos”.

Pesquisas refletem o universo plural
Atreladas ao Inventário, estão uma série de artigos, teses,

Manejo – Lavras do Sul – Foto: Luciene Mourige

dissertações, Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC’s) e outros produtos científicos que evidenciam as inúmeras formas de ser, viver e lidar na pampa plural. O aprofundamento dessas questões é fruto do suporte da UFPel ao projeto, que se articula à formação dos alunos, relacionando pesquisa com ensino e extensão. Para a coordenadora, trata-se de uma riqueza vultosa. “Quando a Universidade se envolve, traz uma amplitude de discussão muito grande”, observa.

Nas produções, aparecem temas como as relações entre a doma de cavalos com os saberes da pecuária e as ligações com os “caminhos das tropas”, e o ciclo completo do

Esquila a Martelo – Piratini – Foto: Fio Farroupilha

artesanato em lã – especialmente na técnica de Jacquard – que mostra os caminhos da lã na pampa, os quais ainda carecem de informações oficiais. Dentre as descobertas e registros, também ficam indícios que contrariam a “narrativa oficial do gaúcho”, mas mostram, por exemplo, o papel das mulheres, populações indígenas, quilombolas e práticas agrícolas – para além da pecuária e do papel branco e masculino.

Dentre os temas que também surgiram nos estudos da equipe estão as condições geográficas do ambiente – as particularidades dos Campos Dobrados, que envolvem

Fiando a Lã (roca de pedal) – Herval – Foto: Miriel Bilhalva Herrmann

um agronegócio mais prejudicado pelas pedras, que ao mesmo tempo defendem a pampa –, e a preservação dos campos nativos e sua relação com a pecuária, que possibilitou, por exemplo, a percepção das dinâmicas agrárias e ambientais com as pessoas e territórios. Assim como campos e relação com as cidades e relação entre cultura, comunidade e ambiente.

O trabalho, apontam os pesquisadores, mostra a diversidade do Alto Camaquã. Abarca uma infinidade de técnicas, várias pessoas que sabem fazer, e, ao identificar essas pessoas, oportuniza políticas públicas que possam salvaguardar esses saberes. “Esses saberes constituem as

Tear de pente – Palmas, Bagé – Foto: Guilherme Santos-Sul 21

pessoas e por isso a importância de reconhecer, identificar, valorizar e salvaguardar. Quando a gente fala em cultura viva, é a partir desses laços. É uma malha conectada. Essas referências constituem as pessoas, a própria pampa, que está em processo e se transformando. É um mundo que se abre”, salienta a coordenadora.

Assim, pampa, terra, água, relações humanas, animais, coisas, habitação, ambientes estão emaranhados e conectados, acompanhando os ciclos da criação, os horários do sol, as estações do ano, os períodos de chuva e estiagem, tradição ao lado de inovação e diferentes saberes, ao longo do tempo. Agora devidamente documentados.

“Extremamente valioso”

Cachorro Campeiro – Lavras do Sul – Foto: Mario Witt

A pecuarista familiar e presidente da Associação para Grandeza e União de Palmas (Agrupa), Vera Mariza Scholante Colares, é enfática ao destacar a importância do trabalho para a comunidade da região. Para ela, o Inventário valoriza e dá conhecimento, ao estado e ao país, da lida campeira. “Muita gente nem sabe que existe pecuária familiar no Rio Grande do Sul”, pontuou a pecuarista, que em sua propriedade trabalha com criação de ovinos, bovinos, caprinos, animais domésticos, doces de tacho, esquila a martelo, doma, entre outras. Segundo ela, a pecuária familiar é uma atividade diferenciada, principalmente na forma como trata os animais. “Para nós, cada um é uma vida e é importante, independentemente do resultado econômico que vai dar à frente”, afirma.
O INRC registra, em sua visão, a tradição e um modo de vida. “Nós e nossas lidas estamos aqui. Nós existimos. É o nosso dia a dia”.

Ovelhas no Brete – Jaguarão – Foto: Luciene Mourige

Em sua avaliação, o projeto contribui até mesmo na defesa do território, que sofre ameaças ligadas à mineração e hidrelétricas. “Prova que a gente tem um saber, uma tradição, uma cultura especial que merece ser preservada. É um trabalho extremamente valioso”, destaca.

Para Fabiani Franco de Alves, que mora na Comunidade Quilombola de Palmas, a cerca de 80 quilômetros do centro de Bagé, o trabalho desmistifica a imagem tanto da lida campeira presente no senso comum quanto do próprio quilombo. “Quando a gente fala em quilombo, o pessoal logo pensa no passado, no que se via nos livros, e pensa que não evoluiu. Não espera encontrar casas de material, internet”, conta. De acordo com ela, o Inventário abre os horizontes e mostra o quilombo para quem não conhece. Dentre as principais lidas da comunidade, estão a criação de caprinos, bovinos e ovinos, além de horta para consumo próprio. “O quilombo não está apartado e também faz parte do processo da lida campeira”, pontua.

Pampa diverso
“Acima de tudo, o INRC da Lida Campeira revela que o Pampa brasileiro é muito mais diverso, em termos socioculturais e ambientais, do que se convencionou imaginar”. A avaliação é do antropólogo e técnico do Iphan-

Feitura de doce no tacho de cobre – Palmas, Bagé – Foto: Daniel Vaz Lima

RS, Caetano Kayuna Sordi Barbará Dias. Segundo ele, ao longo do século 20 o declínio socioeconômico da pecuária extensiva fez emergir uma ideia de que os modos de vida relacionados à lida pastoril estavam com os dias contados ou em via de desaparecimento. “Pensava-se, em grande medida, que o ‘gaúcho’ sobreviveria apenas como uma figura folclórica, dissociado da sua base material”, diz. De acordo com o antropólogo, as duas fases do inventário, no entanto, revelam que esta é uma imagem equivocada do Pampa e do próprio gaúcho – ou melhor, do campeiro – pois o mundo das lidas é resiliente e apresenta uma grande inventividade cultural face às transformações sociais e econômicas ocorridas nas últimas décadas. E isso acontece porque seu panorama social é muito diverso. “A lida campeira permanece sendo uma importante referência para a construção da memória e a identidade de todas essas comunidades”, pontua.

Manejo – Lavras do Sul – Foto: Luciene Mourige

Segundo Dias, no caso dos Campos Dobrados do Alto Camaquã, a segunda fase do inventário chama atenção para um conjunto de saberes, práticas e modos de existência que estão na base da conservação de uma das áreas mais bem preservadas dos Campos Sulinos, que é como os estudos em ecologia têm se referido aos domínios campestres subtropicais do Sul do Brasil. Essa categoria inclui tanto o Bioma Pampa como os campos de altitude do Planalto Meridional. “Desse modo, o INRC da Lida Campeira também destaca a indissociabilidade entre patrimônio natural e cultural para a preservação dos ambientes campestres, assim como a importância da articulação entre ambas as dimensões para o desenvolvimento sustentável de base comunitária”.

Possível Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro

Lida com Guachos – Herval – Foto: Miriel Bilhalva Herrmann

A principal exigência para que a lida campeira se torne Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro é a manifestação de interesse das comunidades detentoras e sua anuência para a instauração do processo. No caso da Lida Campeira, explica Dias, a anuência dos detentores está fartamente documentada ao longo do inventário e nas peças que subsidiam o pedido de Registro, que atualmente se encontra em análise pela Câmara Setorial do Patrimônio Imaterial. Esse é o órgão do Iphan responsável deliberar se há elementos, na documentação apresentada, que apontem que o bem em questão possui continuidade histórica e relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira. Havendo pronunciamento favorável da Câmara Técnica, passa-se à fase de instrução do Registro propriamente dito. Essa fase consiste na elaboração de um dossiê e peças audiovisuais sobre o bem cultural, seus detentores e todos os demais elementos que lhe sejam relevantes. Por fim, todo esse material é apreciado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

Pastoreio de Bovinos – Lavras do Sul – Foto: Luciene Mourige

Uma vez registrado, o bem passa a ser objeto de ações de salvaguarda, ou seja, medidas que visam a sustentabilidade da reprodução do bem cultural a curto, médio e longo prazo.

As lidas campeiras
Conheça um pouco algumas das lidas campeiras registradas no INRC:

Doma
O ofício de domador é uma atividade que compõe as lidas campeiras para que o cavalo “fique sujeito”, aceite os comandos do cavaleiro. A doma tradicional consiste no uso da força, de técnicas de reforço para submeter o animal e dos saberes tradicionais como a observância dos ciclos lunares. No conjunto de transformações das práticas campeiras, tem-se a doma racional, em que são utilizadas técnicas de adestramento sem o uso da força, baseada na confiança entre o cavalo e o cavaleiro.

Esquila
É a atividade de tosar ovinos, selecionar e embolsar a lã, utilizada como matéria-prima para confecção de artefatos e roupas. A lã que for ser utilizada para esses fins, ao contrário daquela dos pelegos, deve ser extraída de animais vivos, mantendo assim as qualidades necessárias para o uso. Em princípio os esquiladores eram chamados em grupos para efetuarem a tosa nas estâncias. As chamadas “comparsas” muitas vezes eram compostas por mais de 50 homens, que tosavam centenas de ovelhas usando uma tesoura específica para esquilar, prática chamada de “tosa a martelo”. No contexto de modernização, surge a máquina de tosa, aparelho que dinamiza a atividade.

Ofício de guasqueiro
Os guasqueiros são artesãos especializados em produzir artefatos cuja principal matéria-prima é o couro cru – as tiras de couro cru são chamadas “guascas”. Os artefatos feitos pelos guasqueiros são geralmente utensílios para a lida campeira: laços, arreios para montaria em equinos, peças do vestuário e demais objetos que são necessários à execução das atividades na pecuária. Além da funcionalidade, os elementos estéticos incorporados seguem padrões peculiares, como a trançagem dos tentos (tiras finas de couro).

Lidas Caseiras
Atividades cuja funcionalidade está voltada para a manutenção doméstica e cotidiana da propriedade rural. São trabalhos que incluem desde os serviços de cozinha e limpeza da casa até capina, ordenha, cuidado com os chiqueiros, galinheiros, jardins e hortas.

Pastoreio
Se refere à criação, reprodução e cuidado com os animais envolvidos na pecuária extensiva, e requer uma rotina de trabalho que obedeça aos ciclos da natureza, ou o “horário do sol”.

Tropeadas
Os tropeiros são trabalhadores cuja principal atividade é transportar a cavalo rebanhos de uma localidade a outra.

Artesanato em Lã Crua
É um saber-fazer disseminado pela pampa do Brasil, da Argentina e do Uruguai. É constituído através de diferentes técnicas e modos de fazer – transmitido e renovado por meio das gerações. É uma atividade manual em que o artesão e a artesã, geralmente, detêm todas as etapas e compreende o processo na íntegra, da produção até a execução, incluindo a retirada da lã, lavagem, tingimento, cardagem – que possibilita “pentear” a lã, deixando as fibras no mesmo sentido –, fazer o fio e tecer.

O conteúdo do INRC
– Volume 1
Apresentação, Ficha de Identificação do Sítio e Ficha de Identificação de Ofícios e Modos de Fazer, incluindo pastoreio de bovinos, ovinos, caprinos, caprinos na Comunidade Quilombola de Palmas, lida caseira e artesanato em lã.
– Volume 2
Anexo Contatos e Questionários de Identificação de Ofícios e Modos de Fazer.
– Volume 3
Anexo Registros Audiovisuais, com fotografias e desenhos, e Anexo Bibliografia.
– Anexos
Atualização da produção bibliográfica da equipe de pesquisa do INRC Lida Campeira, incluindo banners, blog e exposições, atividades dos bolsistas, teses, dissertações, Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC’s), artigos e periódicos, capítulos de livros, textos em revistas e apresentações de trabalhos.

Equipe
Coordenação do INRC Lida Campeira
Profa. Dra. Flávia Maria Silva Rieth (UFPel) – Doutora em Antropologia Social –
UFRGS

Equipe de Pesquisa
Dr. Daniel Vaz Lima – Doutor em Antropologia – UFPel
Me. Vagner Barreto Rodrigues – Mestre em Antropologia – UFPel
Ma. Miriel Bilhalva Herrmann – Mestra em Antropologia – UFPel
Ma. Andreia Sá Brito (UNIPAMPA) – Mestra em Extensão Rural – UFSM
Dr. Felipe Leindecker Monteblanco (IFSul-Santana do Livramento) – Doutor em Geografia – UFSM

Bolsistas de Iniciação Científica
Mateus Fernandes da Silva (Bolsista de Iniciação Científica FAPERGS/2020 e
CNPq/2021) – Bacharelado em Antropologia – UFPel
Leonardo Sapucaia (Bolsista de Iniciação Científica UFPel/2020 e FAPERGS/2021) – Bacharelado em Antropologia – UFPel

Saiba mais
Para conhecer mais do trabalho, acesse o Blog Lida Campeira.