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UFPel participa de série da Lancet contra marketing abusivo de fórmulas infantis

• Menos da metade das crianças em todo o mundo são amamentadas como recomenda a Organização Mundial da Saúde, com o comércio de leites artificiais para crianças em alta, apesar de as fórmulas industrializadas não conseguirem oferecer os mesmos benefícios de nutrição, saúde e desenvolvimento que o leite materno.

• A Série da Lancet sobre Amamentação em 2023 sustenta que empresas de substitutos do leite materno exploram as emoções dos pais e manipulam informações científicas para gerar vendas às custas da saúde e dos direitos de famílias, mulheres e crianças.

• A Série também destaca a influência do poder econômico e político das principais companhias de fórmulas artificiais e a negligência de políticas públicas que resultam em milhares de mulheres privadas de amamentar conforme a recomendação de saúde.

• Os autores ressaltam que o aleitamento materno é uma responsabilidade coletiva da sociedade e fazem um apelo por ações de promoção, apoio e proteção mais eficazes, incluindo a disponibilidade de equipes de saúde mais capacitadas e o estabelecimento de um tratado jurídico internacional para proibir o lobby político e o marketing abusivo das fórmulas infantis.

O aleitamento materno recebe apoio e investimento insuficientes por parte de governos e sociedade, enquanto emoções e vulnerabilidades dos pais relacionadas ao desenvolvimento infantil estão sendo exploradas como oportunidade de negócios pela indústria de fórmulas infantis, aponta uma série de três artigos sobre amamentação, publicada nesta terça-feira, 7, pela revista The Lancet, com a contribuição de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Os autores alertam para o uso de estratégias de marketing abusivo pelas corporações de fórmulas infantis e pedem o estabelecimento de um tratado jurídico internacional para proibir o lobby político e a publicidade irresponsável de empresas de substitutos do leite materno.

De acordo com os dados da série, menos da metade das crianças em todo o mundo são alimentadas exclusivamente com leite materno até os seis meses de idade, conforme recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS). Já a comercialização de leites artificiais para crianças tem aumentado rapidamente nos últimos vinte anos, movimentando, atualmente, 55 bilhões de dólares por ano – dos quais de 2,6 a 3,5 bilhões de dólares são investidos em marketing.

“O mais grave é que as fórmulas industrializadas não conseguem proporcionar os benefícios de nutrição, saúde e desenvolvimento do leite materno. Já está consolidado pela ciência que bebês amamentados estão mais protegidos contra desnutrição, doenças infecciosas e mortalidade infantil, além de serem menos propensos a desenvolver doenças crônicas, como obesidade e diabetes, a longo prazo. Ainda, a amamentação tem impacto positivo sobre a inteligência, com resultados que se estendem até a vida adulta”, diz o professor emérito da Universidade Federal de Pelotas e coautor da série, Cesar Victora.

Estratégias de marketing abusivo e lobby político
A série aborda como o marketing das fórmulas lácteas tira vantagem da falta de proteção, incentivo e suporte ao aleitamento para explorar emoções dos pais, manipular informações científicas e gerar vendas. Uma das razões mais comuns pela qual as mulheres introduzem o leite em pó se baseia na interpretação do comportamento inquieto do bebê, especialmente o sono conturbado e o choro persistente, como um sinal de que o leite materno é insuficiente. Entretanto, os padrões de sono dos bebês são diferentes dos de adultos, e a inquietação nesta fase faz parte do desenvolvimento normal. Quando as mães recebem apoio adequado, essas preocupações podem ser tratadas com sucesso sem o uso dos leites artificiais.

Outra tática de marketing abusivo consiste em distorcer questões de gênero a favor da venda dos produtos lácteos. Os autores descrevem como a indústria de leite em pó enquadra a defesa da amamentação como um julgamento moralista, de característica antifeminista e prejudicial para as mulheres, enquanto apresenta a fórmula infantil como uma solução de empoderamento para mães que trabalham.

“A indústria do leite em pó se utiliza de ciência precária, com poucas evidências de apoio, para sugerir que seus produtos são soluções para os desafios comuns de saúde e desenvolvimento infantil. Os anúncios afirmam que fórmulas especializadas reduzem a agitação, aliviam cólicas, prolongam o sono à noite e estimulam níveis elevados de inteligência. Os rótulos usam palavras como ‘cérebro’, ‘neuro’ e ‘QI’, com imagens que destacam o desenvolvimento precoce, mas estudos não mostram qualquer benefício dos ingredientes desses produtos sobre o desempenho acadêmico ou a cognição a longo prazo”, comenta a coautora da série, Linda Richter, da Universidade de Wits, na África do Sul. Segundo a autora, essa técnica de marketing viola o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, que diz que os rótulos não devem idealizar o uso da fórmula, e explora uma ciência deficiente para criar uma história falsa e vender mais produtos.

Impulsionada pelo relatório investigativo The Baby Killer sobre o marketing de fórmulas infantis da Nestlé, no hemisfério Sul, na década de 70, a Assembleia da Organização Mundial de Saúde desenvolveu o Código Internacional de Comercialização dos Substitutos do Leite Materno e suas resoluções subsequentes em 1981.

No entanto, uma revisão inédita de 153 estudos, conduzida para a série, detalha como empresas de leite em pó infantil violam regularmente o código em mais de cem países, de todas as regiões de mundo, desde a criação do documento há mais de quarenta anos.

A série destaca exemplos de marketing digital, como o caso de influenciadores pagos pela indústria, que compartilham as dificuldades da amamentação como introdução à propaganda do leite em pó. Aplicativos patrocinados com serviços de bate-papo 24 horas por dia, sete dias por semana, possibilitam a apresentação de produtos, ofertas de amostras grátis e promoção de vendas online. Os autores argumentam que a regulamentação das práticas da indústria de leite em pó no ambiente online é frágil, com violações regulares do Código.

A série também chama atenção para o poder da indústria das fórmulas infantis de influenciar decisões políticas nacionais e interferir nos processos regulatórios nacionais e internacionais. O comércio de leite em pó é uma indústria multibilionária em expansão – o mercado global é dominado por um pequeno número de corporações transnacionais com considerável poder econômico, em parte empregado para articular redes de associações comerciais e grupos de fachada que fazem lobby contra o Código e outras medidas de proteção ao aleitamento materno. Por exemplo, na África do Sul, produtores de fórmulas infantis formaram a Infant Feeding Association, para pressionar por alterações e emendas à legislação que implementou o Código da OMS como lei nacional no país.

Além de influenciar organizações políticas, os autores argumentam que as empresas de leite em pó financiam e influenciam profissionais de saúde, organizações científicas e médicas – com múltiplas abordagens que envolvem conflitos de interesse inaceitáveis em saúde pública.

Aleitamento materno é uma responsabilidade coletiva
“De nada adianta dizer às mães que a amamentação é o melhor para os bebês se as elas não tiverem apoio para entender e aprender sobre o comportamento dos recém-nascidos, ou se mães sem licença maternidade ou remuneração se virem forçadas a voltar ao trabalho por causa de necessidades financeiras”, diz a coautora Julie Smith, da Universidade Nacional Australiana.

As mulheres enfrentam falta de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno dentro dos sistemas de saúde devido à escassez de investimento público, falta de apoio qualificado dos profissionais de saúde, influência da indústria de leite em pó e ausência de cuidados adequadamente inseridos na cultura e orientados pelas necessidades das mulheres. De acordo com os autores, os níveis de aleitamento materno melhoram quando os sistemas de saúde capacitam ativamente as mulheres e permitem que pares experientes apoiem as mulheres durante a gravidez, o parto e pós-parto. Profissionais de saúde deveriam oferecer aconselhamento especializado antes e depois do parto a todas as mães, para permitir que elas possam lidar com a agitação do bebê, enquanto continuam a amamentar, se assim o desejarem.

“Uma expansão do treinamento de profissionais de saúde sobre o aleitamento materno, bem como a licença maternidade remunerada exigida por lei, e outras proteções são vitais. Isso requer mudar a forma como a sociedade vê a amamentação: de uma responsabilidade exclusiva de cada mulher a uma responsabilidade da sociedade em todos os níveis”, diz o professor Rafael Pérez-Escamilla, da Escola de Saúde Pública de Yale.

O editorial sobre o artigo publicado na Lancet traz: “Algumas mulheres não conseguem amamentar ou escolhem não o fazer. A pressão percebida, ou a dificuldade, para amamentar – especialmente se estiver em desacordo com os desejos da mãe – pode ter um efeito prejudicial na saúde mental materna, e os sistemas devem funcionar para dar suporte às mães e suas escolhas. Mulheres e famílias tomam decisões sobre alimentação infantil com base nas informações que recebem, e uma crítica às práticas de marketing predatório não deve ser interpretada como uma crítica às mulheres. Todas as informações que as famílias recebem sobre alimentação infantil devem ser precisas e independentes da influência da indústria para garantir uma tomada de decisão consciente”.

Foto: European Union 2011 PE-EP/Pietro Naj-Oleari